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EDGAR ALLAN POE E O BARRIL DE AMONTILLADO

16 ago 2009, Posted by degustadoresfronte in Notícias e Artigos

“Suportei o melhor que pude as injúrias de Fortunato; mas, quando ousou insultar-me, jurei vingança”. Começa com essa frase – que já diz muito sobre o caráter da personagem – um dos mais famosos contos de Edgar Allan Poe, cujo segundo centenário de nascimento se comemora esse ano. Trata-se de “O Barril de Amontillado” , uma das obras primas desse mestre das pequenas narrativas de terror e precursor dos romances policiais.

Nascido em Boston, filho de um casal de atores de poucos recursos, ficou órfão ainda criança de pai e mãe, tendo sido adotado por um rico casal de Richmond, Virgínia, o que lhe garantiu uma boa formação cultural. Levado a estudar na Inglaterra e Escócia, retornou aos EUA em 1822, onde continuou seus estudos com bons professores. Em 1826, já estava matriculado na Universidade de Virgínia, mas a freqüentou apenas por um ano, tendo sido expulso por indisciplina e mau comportamento. Nesse período a bebida e o jogo já faziam parte de sua vida, e iriam acompanhá-lo até o fim.

Reconciliado com o rico padrasto, que se sentiu extremamente frustrado com a expulsão, alistou-se nas Forças Armadas americanas no ano seguinte, época em que começou a escrever. Em 1829 consegue alistar-se na prestigiosa Academia Militar de West Point, de onde é também afastado, dois anos depois, devido a seu comportamento atribulado e seu envolvimento com bebedeiras e dívidas de jogo. Nesse período, havia perdido sua madrasta , que sempre o protegia, e o padrasto não teve nenhuma dúvida em romper definitivamente com ele e deserdá-lo.

A partir daí passou a viver do que escrevia, tornando-se editor do jornal Southern Literary Messenger, de Richmond, e mais tarde de outros jornais. A morte prematura de sua amada esposa Virgínia fez com que o escritor mergulhasse em profunda depressão e se entregasse definitivamente ao alcoolismo. Seu fim foi trágico. Morreu literalmente na sarjeta, com apenas 40 anos, em Baltimore. Deixou, no entanto, um valioso legado literário que iria influenciar grandes autores que apareceriam depois. Dentre suas obras mais notáveis vamos encontrar “ Os Crimes da Rua Morgue”, “ A Narrativa de Arthur Gordon Pym” , “ Dreamland”, além do genial poema “ The Raven” (O Corvo), traduzido para o português pelo não menos genial Machado de Assis.

É em “Tales of the Grotesque and Arabesque”, que vamos encontrar “O Barril de Amontillado”. Seu tradutor francês foi nada mais nada menos que Charles Baudelaire, tido por muitos como o grande poeta do século XIX e grande artífice da modernidade, um fã fervoroso de Poe, que enalteceu sua obra e a fez conhecida na Europa. O autor de “ As Flores do Mal” tinha grande admiração e muitas afinidades com Poe, tendo ambos construído a imagem de “escritores malditos” pela temática e o tom de suas obras.

“Histoires Extraordinaires”, foi essa a tradução que Baudelaire deu ao livro, e que foi também a origem do título em português e do muito interessante filme “ Histórias Extraordinárias” , lançado em 1968, uma coletânea de três contos levada à tela por três grandes diretores. Roger Vadim dirigiu “Metzengerstein”, outro francês, Louis Malle, filmou “William Wilson” e Federico Fellini realizou o fantástico Toby Dammit, numa adaptação livre trazida, para a modernidade, contando as angústias de um famoso ator inglês atormentado pela perseguição dos fãs, da imprensa e pelo Demônio, vivido Terence Stamp.

Assisti ao filme na época, ainda bem jovem, e confesso que esse meu primeiro contato com Poe. Li depois o tenebroso “ A Queda da Casa de Usher” e o poema que é um dos ícones da literatura norte-americana, “ O Corvo”. Também nessa época surge a edição da editora Abril, em capa dura, toda negra, com um desenho gótico dourado, bem no estilo do autor, de “ Histórias Extraordinárias”, que comprei prontamente e tenho até hoje.
“O Barril de Amontillado” é um perfeito conto de terror e faz parte do livro. Curto, bem construído, cruel e pleno de suspense e terror. Extremamente frio e racional em sua escrita, Edgar Poe até hoje surpreende seus críticos por ter conseguido deixar uma obra delineada com tanta clareza apesar de passar a maior parte de sua vida num estado de pouca lucidez. A história me marcou profundamente pelas suas qualidades e, também, pela curiosidade que despertou em mim o tema do vinho. Movido pela minha natural curiosidade, fui atrás de tudo o que pude encontrar sobre Xerez e Amontillados, o que não era muito numa época em que nem se sonhava com a Internet e os livros sobre vinho eram poucos.

A história se passa numa época indefinida em Veneza, durante o Carnaval. Como em todas as histórias de Poe, é narrada na primeira pessoa, no caso um membro da família Montresor, que queria se vingar de um desafeto, Fortunato, que julgava tê-lo ofendido. Ambos eram conhecedores de vinho e mantinham – como é comum nesses casos – um relacionamento que beirava o cordial apesar dos ódios contidos. Montresor se encontra na rua com Fortunato, este já visivelmente bêbado, e puxa conversa. Diz a ele que havia acabado de receber um barril de Amontillado – um dos tipos mais apreciados de Jerez — mas que tinha suas dúvidas, não sabia se era mesmo Amontillado. Ainda não havia pago o vinho, mas precisava ter certeza de sua procedência para fazê-lo. Lançou a isca. Estava pensando em pedir a Luchesi, um amigo comum, para que lhe desse seu parecer. Fortunato logo desqualifica Luchesi, e se oferece para provar o vinho. É o senso de psicologia de Poe. Na verdade, não é apenas a vingança o tema central da trama, mas principalmente a vaidade. Como se vê, não é de hoje que esse sentimento se encontra ligado ao vinho. O narrador diz que sua vítima tinha um “ponto fraco”, “vangloriava-se sempre de ser entendido em vinhos”. E foi essa sua desgraça.

Depois de um diálogo mesclado de muita ironia, o desafortunado Fortunato é levado às catacumbas do pallazzo dos Montresor. O cenário é fantasmagórico. Ossadas humanas repousavam ao lado de pilhas de garrafas de vinho num ambiente escuro e úmido, as paredes e o teto cobertos de salitre. No caminho até o barril, Montresor abre um Médoc para Fortunato, que o bebe todo. Depois ainda um “ De Grâve” (sic), que imagino ser um outro Bordeaux, desta vez um Graves, também prontamente emborcado. O humor negro corre solto. Já bêbado e falando muito, Fortunato se confessa fazer parte da “irmandade”, era um maçom; Montresor confessa que também é um deles. Como o primeiro duvida, o segundo tira de debaixo de seu casaco uma colher de pedreiro, um símbolo maçônico, mas também o instrumento de sua vingança.

Trôpega, a pobre vítima é levada até a um nicho num canto das muralhas de pedras; amarrada a uma corrente com um cadeado, trava – perplexo — um diálogo absurdo com seu algoz, que sobe as fileiras de pesadas pedras assentadas com argamassa. Finalmente dando por si enquanto era emparedada viva, Fortunato berra de forma horrível , mas o som é aos poucos abafado pela última carreira de pedras e a vingança se faz.

Por isso, caro leitor, fica aqui o alerta: quando for convidado por um amigo (ou pretenso amigo?) a visitar sua adega, peço que use de toda sua cautela.

AGUINALDO ZÁCKIA ALBERT

* Publicado na revista FREE TIME , edição 09, Agosto/Setembro de 2009

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