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A FORTE PRESENÇA ÁRABE NO ALENTEJO

16 fev 2006, Posted by degustadoresfronte in Notícias e Artigos

A elaboração de meu próximo livro, que versa não só sobre o vinho, mas também sobre a gastronomia alentejana, me levaram a pesquisar a formação cultural desta região de Portugal de história tão rica. Viajando por essa terra ensolarada e pesquisando sua historiografia, na qual se misturam as influências fenícia, romana e visigoda, percebe-se a marcada presença da então poderosa cultura árabe.

Durante muito tempo se procurou minimizar, ou até mesmo negar, a enorme influência cultural árabe em Portugal e no Alentejo, onde chegaram no século VIII e só saíram no século XIII. A Igreja e a antiga historiografia portuguesa não pouparam esforços para destruir qualquer menção à enorme importância dessa cultura oriental sobre o país. Pesquisas mais recentes, realizadas no século XX, levadas a cabo por estudiosos respeitados, colocam os pingos nos is e nos mostram um cenário bem diverso.

A invasão de povos islâmicos se deu em Portugal no início do século VIII. Curiosamente, tudo começou com a disputa de duas facções locais para a escolha do novo rei visigodo. Os filhos do visigodo Vitiza solicitaram a ajuda de Tarik, da Mauritânia, que comandou um exército majoritariamente composto por berberes, mas também com árabes e judeus, que invadiu a península. Um ano mais tarde, novas forças vindas do norte da África, desta vez compostas por árabes, chegaram ao sul da Espanha e foram conquistando toda a Península Ibérica. O processo durou cerca de 5 anos.

Árabes e berberes tinham em comum a fé islâmica, uma religião que se iniciara a apenas um século na Arábia, e já ganhava outros continentes. Ao contrário dos visigodos, esses homens chegaram à região sem suas famílias. O Alcorão permitia que cada um tivesse até quatro esposas, além de eventuais concubinas. De simples soldados a príncipes e reis, o casamento com mulheres locais foi inevitável, dando origem a uma profunda miscigenação que levou alguns estudiosos a descreverem o alentejano como sendo alguém com o espírito de um romano no corpo de um árabe. Tal fato pode ser constatado por aqueles que visitem a região mediante a observação do tipo físico da maioria de seus habitantes.

Passados os primeiros anos da conquista, a política muçulmana em relação aos vencidos foi marcada por grande tolerância cultural e religiosa. Os cristãos poderiam guardar sua religião mas deveriam pagar um tributo ao califa sobre tudo que produzissem. Tal fato fez com que muitos se convertessem à nova fé para se verem livres desse imposto, o que fez com que houvesse uma rápida integração entre esses povos, que acabaram por mesclar, de forma espontânea e pacífica, seus hábitos e costumes.

Como se pode deduzir, a influência árabe-muçulmana na região foi enorme, muito maior do que a dos povos anteriores, uma vez que a ocupação árabe durou cerca de 8 séculos. Além disso, quando da Reconquista Cristã, modernos estudos realizados apontam para o fato de apenas a elite dirigente árabe ter sido expulsa, tendo ficado na região a maior parte da população. Exames do DNA da população de nossos dias comparadas com as do período muçulmano nos comprovam que são praticamente iguais.

Uma presença assim tão forte marcou profundamente a cozinha do sul de Portugal, ainda mais se considerarmos que o Alcorão não é apenas um livro religioso, mas que dita normas também sobre a conduta e a dieta alimentar de seus súditos. No entanto, não houve uma postura, digamos assim, “fundamentalista” com relação aos costumes dos povos autóctones. Os muçulmanos, enriquecidos por suas conquistas, foram absorvendo alguns hábitos das elites dos povos, embora guardando o essencial de sua própria tradição. O Corão estabelecia o que era proibido e o que era permitido, puro e impuro, mas com interdições menos rigorosas do que as estabelecidas pelo judaísmo.

Os alimentos, ingredientes e pratos de inspiração árabe que chegaram à região são inúmeros, só perdendo em número para os vocábulos árabes absorvidos pela língua portuguesa (mais de mil). A cozinha árabe nasceu numa região de poucos recursos e se baseava no pastoreio (de onde provinham o leite, a coalhada, os queijos e a carne do cordeiro) e nos legumes. Em regiões mais férteis se somavam os cereais e as frutas. Tal escassez deu origem ao tharid ou târida, que consistia de pão mergulhado em um caldo aromatizado e temperado com azeite. Nesse caldo se poderia agregar as mais variadas carnes e vegetais dependendo do que estivesse à disposição, e se constituía numa refeição completa. Essa foi a origem do mais tradicional prato alentejano, a Açorda.

O poejo, o coentro, o cordeiro de carne gorda, as sobremesas bem açucaradas à base de amêndoas e nozes, são coisas da culinária árabe. Também uma série enorme de especiarias que agregavam aroma e sabor à comida, através de uma refinada e imaginosa combinação dos ingredientes: a alfazema, a água de rosas, a canela, a noz moscada, frutas secas (tâmara, uva-passa, pinhões, pistaches) e frescas (romã, maçã), sem falar do açúcar e do mel.

COZINHA ÁRABE, BASE DA COZINHA ALENTEJANA

É largamente aceito nos dias de hoje que a culinária árabe é a matriz da cozinha do Alentejo. O estilo mediterrâneo romano-visigótico encontrado fez com que houvesse uma grande aceitação da comida muçulmana dada às grandes afinidades entre as duas civilizações. Com exceção do tomate, do pimentão e da batata (todos eles vindos do Novo Mundo), do peru e de algumas variedades de feijões, tudo o mais que é consumido à mesa hoje no Alentejo estava presente na cultura árabe, sendo que a maioria delas foi por eles introduzidas no sul de Portugal.

Ao contrário do que acontecia na cozinha romana, as carnes tinham grande peso na culinária levantina. O carneiro e o borrego (filhote de carneiro com até um ano) eram as carnes mais apreciadas. A galinha, o frango, o ganso, o pato, pombos e as caças em geral eram também consumidos. Muito raramente consumiam a carne de boi ou vaca, reservados para o fornecimento de leite ou para o trabalho no campo. Usavam marinadas para temperar as carnes, geralmente assadas no forno, raramente, grelhadas. O molho marinado era feito com vinagre, especiarias, sal, leite e morrî , tempero feito com vísceras de peixe, vinagre e pimenta. Usavam o almofariz (nome de inequívoca origem árabe) para esmagar a carne quando faziam almôndegas (al-bawdaqa, em árabe).

A carne de porco, interdita pelo Alcorão, não era consumida. Havia, no entanto, tolerância de seu consumo por parte de cristãos e moçárabes (cristãos que habitavam as terras ocupadas por árabes), desde que seu consumo não fosse ostensivo.

Peixes também eram consumidos, mas em escala bem menor do que durante a ocupação romana, como demonstram as poucas receitas encontradas até hoje. Nas regiões próximas ao mar, como em Mértola, um porto fluvial, seu consumo era maior. Ao interior, o peixe chegava salgado, trazidos pelos almocreves, na volta de suas viagens para o litoral para onde levavam cereais. Peixes gordos como o atum e a sardinha eram os favoritos. Dos peixes de rio, a truta era a mais encontrada.

Consumia-se muito o pão, elaborado à base de trigo, e outros cereais como o arroz, outro legado árabe à região. O arroz era normalmente feito com carnes ou vegetais, preparado na panela ou no forno. Comiam também o arroz doce, que chegou até nós, mesclado com açúcar e especiarias como a canela e o cardamono. O pão era feito em casa e assado no forno doméstico, o tanûr, ou cozido no forno do padeiro, o furn. Uma papa feita com farinha e leite, à qual se podia juntar nozes e amêndoas, dependendo das posses de cada um, era a primeira refeição da maioria da população.

Os legumes e as leguminosas tinham presença freqüente à mesa árabe-alentejana. Alcachofras, aspargos, espinafres eram muitas vezes cozinhados com as carnes. Grãos-de- bico, favas, lentilhas e feijões, assim como berinjelas, alface, nabos e rabanetes estavam sempre presentes na dieta.

A doçaria árabe era altamente sofisticada. Sumos de frutas eram elaborados macerando frutas no açúcar; geléias, frutas em compotas, xaropes, purês de maçãs e pastas de nozes eram muito apreciados. Nos bolos, utilizavam a farinha, o ovo, o açúcar (às vezes o mel), a canela, aos quais adicionavam muitas vezes pistaches, nozes, amêndoas e avelãs.

O historiador Alfredo Saramago resume bem a importância da influência árabe-muçulmana. “Um olhar sobre a alimentação do Alentejo identifica imediatamente produtos e práticas de cozinha com a cultura alimentar muçulmana. As semelhanças permitem concluir que a cozinha árabe foi a verdadeira matriz da cozinha alentejana”.

AGUINALDO ZÁCKIA ALBERT

Publicado na Revista Vinho Magazine # 64 e 65, de janeiro e fevereiro de 2006

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