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TULIPAS MORTAS

16 dez 2004, Posted by degustadoresfronte in Notícias e Artigos

“O verdadeiro degustador achará sempre a palavra justa”
Émile Peynaud
Ah, o exagero! Sempre o exagero! As pessoas deveriam ler um pouco de Aristóteles, que aconselhava o caminho do “justo meio termo”, ou mesmo acreditar um pouco nas máximas da sabedoria popular ( “Nem tanto o céu, nem tanto a terra”), antes de falarem sobre vinho.

Já comentei aqui , em outros artigos, os problemas relacionados aos comentários que se fazem a respeito dos vinhos degustados. A constante luta que travamos com as palavras para podermos expressar, ainda que palidamente, a miríade de sensações que o vinho nos proporciona é um desafio para aqueles que se propõem a analisá-lo e escrever sobre ele. O silêncio reverencial pode se ser a melhor forma encararmos um grande vinho. Ou no máximo escrevermos: “Magnífico!”. Mas a página em branco está à nossa frente (ou mais freqüentemente, a fria tela do computador) e precisamos preenchê-la minimamente com não sei quantos “toques” , e , muitas vezes, é preciso se conter para não cairmos no campo fácil da banalização das palavras e dos conceitos.

As degustações analíticas e técnicas atingem hoje um grande público de consumidores , todos muito ávidos de conhecer mais e mais a respeito do vinho. Estas pessoas sorvem sofregamente as palavras de experts (alguns capacitados, outros, nem tanto) em degustações e palestras, e procuram, por sua vez, ir atrás dos tais aromas e sabores de que ouvem falar. Aromas muito específicos não são tão simples de se encontrar nos vinhos, a não ser em alguns casos (maracujá e frutas tropicais em Sauvignons Blancs neozelandeses; mineral e petróleo em Rieslings alemães; aromas tostados e defumados misturados a cassis em bons Bordeaux tintos, etc.). Na maioria das vezes os aromas aparecem muito mesclados e é preciso ter o que eu chamaria de um “nariz absoluto” – assim como Mozart tinha um “ouvido absoluto”—para detectá-los e reduzi-los à sua mais simples impressão.

Análises muito específicas feitas por experts – e também as tolices que muitas vezes encontramos nos contra-rótulos de vinhos muito simples e sem nenhuma complexidade – podem levar o consumidor a se sentir um tolo por não conseguir ter as mesmas percepções. Considerações mais gerais (e mais adequadas) sobre vinhos como “encorpado, fino, complexo, intenso, pouco intenso, grosseiro, muito ácido, gostoso, macio, etc.”cederam lugar a “aromas de berries” (quantos brasileiros já experimentaram uma boa variedade delas), frutas de bosque, mirtilo, etc. Para se perceber tudo isso, o vinho tem que ser muito bom, e o degustador também.

Tenho receio de que tais exageros possam afastar um grande número de pessoas do convívio prazeroso com o vinho. É preciso sempre ter em mente de que o vinho é, antes de tudo, PRAZER. Prazer nos mais variados níveis, dependendo de quem o deguste.

Isso tudo me faz lembrar uma passagem divertidíssima narrada pela jornalista inglesa Jancis Robinson quando esteve recentemente entre nós. Falava da saturação e do enfado que podem acometer os melhores palestrantes em degustações muito extensas diante de um público ávido pelo exagero dos detalhes analíticos. Contava ela que um renomado produtor de Bordeaux de uma tradicional família de vinhateiros de ascendência inglesa (creio eu era o sr. Barton, não tenho certeza) realizava uma longa degustação de seus bons vinhos para uma platéia de turistas japoneses, todos eles munidos de suas indefectíveis máquinas fotográficas , e muito atentos. Estava o sr. Barton já lá pelo décimo vinho, percebendo que as repetições dos descritores de aromas e sabores estavam se repetindo em demasia, o que era inevitável. Procurando não decepcionar a platéia, e sendo aquele o último vinho, agitou a taça e meteu o nariz nela. Já não tendo muito o que falar, olha de repente para o lado. Pela janela aberta viu seu jardineiro podando o jardim do château. Não teve dúvidas. Mandou brasa: disse que o vinho tinha aromas de “tulipas mortas”. Fechou assim com chave de ouro sua degustação.

Pois é, “dead tulips” …

AGUINALDO ZÁCKIA ALBERT
Publicado na Revista Vinho Magazine de Dezembro de 2004

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