DEGUSTAR OU BEBER, EIS A QUESTÃO
16 ago 2002, Posted by Notícias e Artigos in“Words,words,words…”
W. Shakespeare
O movimento mundial em direção aos vinhos de qualidade, observado nos últimos anos, tem mexido de forma sensível no comportamento dos consumidores. É cada vez maior o número de pessoas que se acerca do vinho com uma postura um pouco mais ambiciosa do que a de simples bebedor. Como todos nós sabemos, bebe-se menos quantidade e mais qualidade, e é natural que este produto mais fino seja consumido de forma mais atenta e refinada. Dá-se aí o primeiro passo para se aventurar pelos caminhos da degustação.
Diferentemente do beber hedonístico, ligado ao simples prazer, a degustação analítica requer uma postura bastante diferente . Além pretender reduzir nossas sensações às suas formas mais simples (e por isto ela é analítica), ela é multi-sensorial e, principalmente, reflexiva. Degusta-se de forma atenta procurando interpretar as sensações que o vinho provoca em nossos sentidos.
Como os vinhos de real qualidade começaram a surgir há apenas 250 anos — o que é pouco se pensarmos que o vinho tem cerca de 7 000 anos de história — podemos afirmar que a degustação é uma prática recente. Afinal, de que adiantaria falar de uma bebida pobre de aromas e sabores e sem qualidade? Começa então a surgir um vocabulário de degustação , empregado com maior ou menor rigor, o próprio termo “degustar” (goûter) surgindo, pela primeira vez, num documento oficial de Napoleão, datado de 1813.
A virtude de um degustador não reside apenas em sua sensibilidade para reconhecer os aromas, os sabores e a harmonia do vinho. Ele deve também saber expressar de forma clara e satisfatória essas impressões, depois de elaborá-las intelectualmente. Roubando uma expressão de da Vinci, a degustação é “cosa mentale”. Como se vê, também aqui o homem está “condenado” às palavras.
Difícil imaginar uma arte que expresse melhor o espírito francês do que a degustação, onde a sensualidade se conjuga com o rigor analítico do espírito cartesiano. Émile Peynaud, em seu fundamental “Le Goût du Vin”, afirma que “o verdadeiro degustador achará sempre a palavra justa”, e ele está mais do que certo. Às vezes a “palavra justa” é um termo preciso, enxuto, outras o que cabe melhor é a imagem poética e a associação livre, mais apta a expressar a idéia. Desconfiar das explanações verborrágicas e vazias é um bom conselho. Outro é tentar driblar os chavões (às vezes inevitáveis) e as expressões banais.
Quando se prova um vinho medíocre, sem atributos, o silêncio é a melhor forma de expressão , principalmente quando se degusta o vinho diante de quem o elaborou. No caso, uma questão de simples educação. Por outro lado, os vinhos formidáveis e majestosos, sutis e de grande fineza, também merecem a homenagem do silêncio reverencial, pois as palavras poderiam ficar muito aquém do que gostaríamos de expressar. As alternativas aqui seriam o satori zen-budista ou um soneto com uma chave de ouro impecável.
Mas existe também a hora em que o vinho é pura descontração e prazer, em que se bebe despreocupadamente para alegrar o espírito e bater um bom papo. Nada mais delicioso do que um honesto vinho verde português acompanhando mariscos e outros fruto-do-mar, bebido em grandes goles à beira mar. O vinho leve e ácido matando nossa sede, refrescando nosso corpo (e nosso espírito). Nesta hora uma análise rigorosa do vinho seria descabida, embora existam pedantes e “malas sem alça” capazes de fazê-lo.
Considero um grave erro esquecer ou negligenciar este lado primevo e festivo do vinho, que nos remete às origens desta mágica bebida e de nós mesmos, homens civilizados, muito embora não se possa negar que “saber degustar é a base de saber beber”. A frase é, de novo, do mestre Émile Peynaud…
AGUINALDO ZÁCKIA ALBERT
Publicado na edição #26 da revista VINHO MAGAZINE