Degustadores Sem Fronteiras | A CAMINHO DE KANDAHAR (OU COMO COMBINAR O VINHO COM A COMIDA)
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A CAMINHO DE KANDAHAR (OU COMO COMBINAR O VINHO COM A COMIDA)

16 mar 2002, Posted by degustadoresfronte in Notícias e Artigos

O dia tinha sido estafante e eu dormia o sono dos justos depois de haver trabalhado até bem tarde em meu próximo (e único) livro “A Degustação às Cegas: de Homero a Jorge Luís Borges”, uma pesquisa histórica de fôlego –e muito séria — que deverá lançar novas luzes sobre o mundo da degustação de vinhos.
De repente, o ruído estridente do telefone. Uma, duas, três vezes. Levanto-me sobressaltado. Algo muito sério deveria ter acontecido; eram 4 da manhã!
– “Professor Záckia? “A ligação era muito ruim.
–”Ele mesmo. Mas quem está falando” respondi sem esconder o tom irritado.
–”É a Maria Eudoxia. Não sei se o sr. se lembra de mim. Fui sua aluna no seu último curso.”
– “Maria Eudóxia, Maria Eudóxia…”
– “Maria Eudóxia. Aquela que levou aquele vinho albanês na última aula do curso.”
–”Mas é claro! Não daria mesmo para te esquecer, minha cara. Mas v. não acha que é um pouco tarde para estar me ligando? São 4 horas da manhã!”
– ” No meu relógio é só meio-dia, professor”, respondeu ela choramingando.
–”Como assim?”
– “É que eu não estou no Brasil. Estou falando de meu celular do Afeganistão. Estamos indo para Kandahar, eu e o Abdul, meu noivo. O jipe quebrou e estamos no meio do deserto e estou morrendo de fome. De fome e — principalmente — de sede.
–” Desde aquele vinho albanês eu percebi que v. gostava de esportes radicais mas Afeganistão, nesta altura do campeonato? V. não acha um exagero?”
–”Sempre fui uma idealista” disse ela em tom sincero. “Fundei uma ONG e vim para cá. Quero difundir o hábito de beber vinho entre estes babacas que só pensam em guerra”
–”Tudo bem, tudo bem… Não vamos discutir isto agora.”, respondi com a voz um pouco alteada. “Mas por que me ligar a esta hora?”
–”É que estou quase morrendo de sede!”
–”Não estou entendendo nada”, respondi perplexo.
–”É o seguinte, a comida está quase acabando. Sobrou apenas um pouco de homus . A água acabou todinha . Mas nós achamos uma garrafa de vinho numa caverna. Algum oficial inglês , americano, sei lá, deve ter deixado aqui.”
–”Ótimo! Isto resolve tudo!”
–” Resolve nada, professor. É um tinto de Bordeaux, safra 91″.
–”E daí?’
–”Daí que o sr. mesmo falou lá na aula que 91 em Bordeaux foi um desastre. O Parker deu só 74 pontos pra ela…”
–”Mas minha querida, numa situação dessas v. deve relevar algumas coisas. Por amor de Alá, seja razoável…”
–”Não é só isso. O sr. se lembra o que o sr. falou na aula de Compatibilização? O sr. falou que comida oriental geralmente não vai bem com vinho. Homus então, nem se fala. Grão de bico misturado com tahine, um montão de alho! Bordeaux vai bem com carne de cordeiro, um bom rosbife mal passado, um troço assim.
–”Sim, mas…”
–” O sr. está insinuando que eu devo comer esse homus, que o sr. mesmo disse que não combina com vinho nenhum, acompanhado desse Bordeaux. E da safra de 91 ainda! O sr. me decepciona, professor. Onde estão as suas idéias, as suas convicções?”
–” Ora, minha menina, trata-se de uma emergência, um caso exepcional. Nem sempre a gente come e bebe o que quer. Eu mesmo tive que engolir alguns sapos, recentemente. E v. sabe que eu detesto sapos! Te aconselho a comer o seu homus com o Bordeaux. No fim é capaz até de ficar gostoso. Além do mais eu juro que não conto para ninguém.”
–”O sr. promete? Não conta pro pessoal do grupo?”
–”Prometo.”
–”Jura mesmo?.”
– “Juro. Da minha boca não sai uma palavra. É só v. falar também com seu noivo, o Abdul, para ele também não dizer nada.”
–”O Abdul não tem problema. É um muçulmano ferrabrás. Não bebe álcool de jeito nenhum. Mais um dez minutos e ele empacota. Obrigado, professor, o papo foi muito legal. Vou desligar porque a bateria está pif……”

Durma-se com um baralho desses!

AGUINALDO ZÁCKIA ALBERT
Publicado na revista VINHO MAGAZINE # 27 – Março/2002

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