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MEMÓRIAS QUASE PÓSTUMAS

16 ago 2001, Posted by degustadoresfronte in Notícias e Artigos

“Había aprendido sin esfuerzo el inglés, el francés, el portugués, el latín. Sospecho, sin embargo, que no era muy capaz de pensar. Pensar es olvidar diferencias, es generalizar, abstraer. En el abarrotado mundo de Funes no había sino detalles, casi inmediatos”
J.L.Borges -”Funes, el memorioso”

Eu participara na véspera, com um grupo de amigos, de uma degustação de vinhos das novas regiões produtoras da Espanha. Vinhos de muito boa qualidade mas com nomes quase que impronunciáveis, uma mistura de espanhol, catalão e outros dialetos regionais. Tentava me lembrar de um deles, que havia me agradado particularmente, e o nome não vinha. Nem o nome, nem o produtor, nem mesmo a safra. Branco total.
Tomei um gole de meu Amarone e comecei a me lembrar com saudades do mundo vitivinícola dos anos 80. Nós éramos felizes e não sabíamos. A Espanha era basicamente a Rioja, o Duero e Jerez. Além disso, bastava conhecer Bordeaux e a Borgonha, Toscana e Piemonte, o Douro português e mais algumas regiões tradicionais européias e pronto: podia-se ser considerado um experts em vinhos. Uma boa cabeça podia abarcar todo o conhecimento de seu tempo tal e qual um Aristóteles vínico. A sensação de auto-suficiência e de plenitude era enorme.
De repente as coisas começaram a mudar. Surgem as novas regiões produtoras, os chamados “países emergentes” com seus bons vinhos, as novas técnicas de vinificação. Para não falar das novas safras, nomes de produtores e enólogos, alguns considerados hoje mais importantes mesmo do que os terroirs dos quais se originam as uvas com as quais elaboram seus vinhos.
Meu Deus, onde armazenar isso tudo? Classificações alemãs, appellations francesas, a nova legislação de vinhos italianos, vinhos da Nova Zelândia e da Austrália, etc, etc. Não faz nem um ano que aprendi, finalmente, escrever gewürztraminer sem recorrer ao dicionário… E agora as novas regiões da Espanha! Lancei um olhar cheio de inveja para meu computador. Era uma máquina mas para ele tudo é muito simples. Basta fazer um up grade em sua memória RAM e tudo bem…
Mas, pobre de mim, sou apenas um ser humano, demasiadamente humano. Fui tomado pela angústia e pude sentir minha própria pequenez diante daquele mundo de conhecimento que queria dominar mas que escorria pelos meus dedos.
Recorri novamente ao meu bom “vino da meditazione”. Como sempre me acontece nos momentos de adversidade, tentava me recuperar buscando exemplos de sabedoria na história e me lembrei do bom Sócrates. Apesar de seu péssimo gosto para bebidas (ainda não entendi por que escolhera cicuta como seu último gole antes de morrer. Até mesmo um Retsina seria uma escolha mais razoável!). “A única coisa que sei é que nada sei”, é dele esta frase de grande humildade. E no entanto era o homem mais sábio de seu tempo.
Pensamentos consoladores deste tipo foram, pouco a pouco , (e com o auxílio do bom vinho), refazendo minha abalada auto-estima. Fui aceitando minhas limitações e minha condição humana; a sujeição às palavras para mediar os pensamentos e expressar as sensações.
Já reconfortado, aceitei finalmente a idéia de que lapsos ocasionais de memória podem acontecer a qualquer um, mas é bom que não sejam muito freqüentes junto aqueles que pretendam navegar com desenvoltura pelos mares do vinho. Afinal — como todos sabem — é preciso ter duas grandes virtudes caso se queira ser um enófilo competente e respeitado. Uma delas é ter uma boa memória. Já a outra, é — sem dúvida alguma — possuir um…Bem, o que era mesmo que eu ia dizer…A outra qualidade imprescindível, qual era mesmo?
Voltei desconsolado para o meu Amarone. Bebi a garrafa toda, até o fim. Dormi profundamente e, ao acordar no dia seguinte, não me lembrava de absolutamente nada.

AGUINALDO ZÁCKIA ALBERT
Publicado na Revista Vinho Magazine – ano 2001.

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