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VINHOS EXÓTICOS E TIQUIRA

16 maio 2006, Posted by degustadoresfronte in Notícias e Artigos

Creio que as atividades no mundo do vinho são uma das melhores (e mais agradáveis) formas de vivenciar experiências e fazer novas amizades. Ronald e Mará formam um simpático casal que tiveram um primeiro contato comigo num dos meus cursos de vinho e prosseguiram, se incorporando aos Degustadores Sem Fronteiras, viajando com nosso grupo para Mendoza e para a Borgonha.

Ele , um típico nordestino, nascido em Piri Piri, no Piauí, baixinho e bem falante, com grande dom histriônico; ela, mais tímida, muito simpática, uma paulista de fala mansa e bons dotes culinários. O filho mais velho mora e estuda em Londres, para onde viajam, de quando em vez, os pais saudosos.

Depois de um certo tempo sem nos encontrarmos, o Ronald me liga com um convite para jantar em sua casa, isso em dezembro. Além do prazer do reencontro, a oportunidade de provar um vinho inglês e outro indiano – trazidos na última viagem da Inglaterra – e os pratos elaborados pela Mará aguçaram minha curiosidade. Havia também a promessa de uma surpresa ao final do jantar. Aceitei o convite e fui, acompanhado de uma amiga enófila e de meu filho André.

A noite estava moderadamente quente, nada que comprometesse o serviço de vinhos servidos na temperatura correta, ligeiramente resfriados, pensei. Chegamos e, após calorosa recepção, iniciou-se o papo, contando também com a presença da filha e do genro do casal, regado a boas rodadas de Jerez Tio Pepe.

Seguimos depois para a mesa e começaram a chegar os vinhos, que acompanhariam os pratos. Primeiro o vinho inglês, um Wickham Special Release 2002 Fumé Dry, de Hampshire, com 12,5º de álcool. Duas uvas compunham o blend, Bacchus e Reichensteiner, que provaria pela primeira vez. A Bacchus, um cruzamento da Riesling, Sylvaner e Müller-Thurgau,  e a Reichensteiner, um moderno cruzamento de Müller-Thurgau com a uva de mesa francesa Madeleine Angevine e a italiana Early Calabrese. Como vim a saber depois, ambas as variedades se adaptaram muito bem às hostis condições climáticas da nebulosa e úmida Albion, uma ilha muito mais famosa por seus experts em vinhos do que por seus raros vinhos. Em se tratando de um vinho inglês, até que não se saiu de todo mal. Leve, frutado, de aroma delicado mas não muito intenso, seco e um pouco curto na boca. Bom para bebericar, e é o que estávamos fazendo.

O vinho indiano chegou depois, um tal Château Indage Soma Reserve, sem safra, da obscura região de Sahyachi Valley, com 12º de graduação alcoólica. Ainda não sei se o devo chamar de tinto, pois sua falta de concentração o fazia parecer semelhante a um rosé. O rótulo, de gosto duvidoso, trazia  uma foto colorida de uma bailarina indiana e as informações citadas acima. Virei a garrafa e busquei logo o contra-rótulo, curioso por saber mais de sua composição e características. Obscurum per obscurum. “Soma wine is a blend of ancient Indian grapes (?) and select French varieties (??) resulting…..blá, blá, blá…….”. Percebi logo o que poderia sair daquela garrafa e meus maus presságios se confirmaram. A cor do vinho era de um granada bem claro, sem concentração de cor e já mostrando notas de evolução. Absolutamente nenhum aroma frutado, apenas algumas notas de couro, felizmente de baixa intensidade. Insípido também na boca, era magro como um faquir, e meu primeiro impulso foi de, se pudesse,  arremessar a taça no Ganges. Ao invés disso, comecei a agitar a taça, no afã de despertar o vinho, repetindo várias vezes, como num mantra “Melhore só um pouquinho, melhore só um pouquinho, melhore só um pouquinho…”. Os deuses não me ouviram…

Antes ainda que se servisse o jantar, resolvemos pisar em campo mais seguro e provar alguns vinhos sul-americanos: um fresco e refrescante Castillo de Molina Reserva Sauvignon Blanc Fumé 2003, do Vale de Lonthué, Chile (bem superior ao branco inglês), e dois tintos, um chileno do Vale do Maipo, Floresta Syrah 2003 e um Malbec mendocino, Casa Marguery 2003, ambos de muito boa qualidade.

Serviu-se então o jantar, e Mará não decepcionou. Uma salada de Chèvre Chaude, acompanhado pelo delicado vinho inglês; um delicioso (e bem brasileiro) Camarão marinado em ervas e especiarias sobre um leito de Caju, muito bem escoltado pelo Sauvignon Blanc chileno. Os tintos foram servidos com as Codornas recheadas de  Paté de Foie Gras,  casamento que deu muito certo. Reservei o vinho indiano para o dia seguinte, um domingo, quando lavaria a minha bicicleta.

Para a sobremesa, tivemos dois doces brasileiros, doce de limão em calda e doce de buriti, e um dessert francês, Pêra ao Vinho. A “bebelança” corria solta e resolvemos abrir um bom Madeira, um Justino Malmsey 10 anos, para acompanhar os doces.

Tudo parecia estar chegando ao bom final, até que o Ronald se manifesta:

__ “Chegou a hora da surpresa!”

__ “Eu já ia até me esquecendo, o que v. ainda tem aí”, respondi.

Pois não é que o Ronald se levanta, vai até a cristaleira e traz uma garrafa branca de cachaça Pirassununga, arrolhada,  o rótulo já meio baleado, com uma pequena etiqueta adesiva onde se lia, escrito à mão, “10/1987”. Me veio então à mente uma conversa que tivemos, anos atrás, em Beaune, na Borgonha, após um bom jantar, embalados por um Marc, destilado típico da região. O papo era sobre bebidas fortes, destilados potentes, e pela primeira vez ouvi falar da Tiquira, um destilado típico piauiense, de origem indígena, elaborado à base de mandioca.

Lembrando naquele momento trechos de nosso papo, senti um certo tremor ao ver aquela garrafa. No entanto, já bem embalado, aceitei o primeiro trago. Apesar de sobrar álcool no nariz, o aroma era até agradável, lembrando casca de laranja e anis. Virei de um trago só e pude sentir o chamado “primeiro ataque”. Foi como receber um golpe de borduna vibrado por um bravo guerreiro tupi. Assimilei o golpe, me recompus, e continuamos o papo, agora sobre as virtudes da Tiquira. Novo trago e a imaginação se soltou, e vieram os planos mirabolantes. Trazer a Tiquira, vendida baratíssima no nordeste, ao mercado paulista, bolar um bom plano de marketing, sofisticar a bebida e vender a bebida a alto preço, realizando bons lucros.

O papo correu solto madrugada adentro. Mais um trago, e o plano de criar uma DOC Tiquira, uma Denominação de Origem Controlada, para conferir mais autenticidade e nobreza à bebida. Sugeri uma Tiquira DOC PIORÃO, uma região que compreenderia parte dos territórios do Piauí e do Maranhão, que foi prontamente avalizada pelos convivas. Também a contratação de um “analista sensorial” mais deslumbrado para sua divulgação.

Acordei no dia seguinte em minha cama com a sensação de ter um deserto (ou ao menos uma caatinga) na minha boca. A cabeça também latejava. Agradeci aos deuses no Olimpo ter levado comigo o meu filho. Uma boa ducha e comecei a me recompor. Deixei para lavar a bicicleta à tarde.

Pois é, vinhos exóticos e tiquira. Vivendo e aprendendo…

AGUINALDO ZÁCKIA ALBERT

Publicado na Revista Vinho Magazine #66, de maio de 2006

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