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O RITUAL E O VINHO

16 ago 2003, Posted by degustadoresfronte in Notícias e Artigos

Outro dia, relendo o livro Boitempo, de Carlos Drummond de Andrade, tropecei — como numa pedra no meio do caminho — no poema “O Vinho”. Já nem me lembrava de sua existência, nem de tê-lo lido, e o sorvi com grande prazer . No livro nosso poeta maior rememora sua vida simples de garoto e adolescente em Itabira, passada com a mãe, doce e serena, e o pai severo.

“O vinho à mesa, liturgia”, eis o verso que abre o poema , e que também sintetiza o poema, que nos fala do ritual do pai, tal qual um “grande sacerdote”, sacando a rolha da garrafa de vinho, sob o olhar atento e respeitoso da família e do jovem Drummond. “Respeito silencioso/paira sobre a toalha./A garrafa espera o gesto,/o saca-rolha espera o gesto,/ a família espera o gesto/ que há de ser lento e ritual”. O poema me levou a pensar na nova tendência da utilização das rolhas sintéticas e , mais do que isso, nas chamadas screwcaps, que utilizam o sistema de rosca, que, embora pareçam eficientes, considero abomináveis.

Existem evidências históricas de que a rolha começou a ser utilizada na Grécia antiga, quando o homem despertou para a necessidade de conservar melhor o vinho. Ela servia para tapar as ânforas usadas na época. Devido talvez à ocupação do sul da Península Ibérica (região de onde provem a cortiça) pelos mouros, a partir do século VIII, sua utilização caiu em desuso durante a Idade Média. Ilustrações da época nos mostram barris tampados com tocos de madeira envolvidos em tecido.

Durante o século XVII, com o desenvolvimento das garrafas de vidro, a rolha de cortiça retorna, desta vez para ficar. (Pelo menos até agora!). Extraída da casca do sobreiro (Quercus Suber), árvore que cresce na Espanha e em Portugal, regiões responsáveis por 80% da produção mundial, a rolha de cortiça revelou-se imbatível na vedação das garrafas de vidro.Sua fabricação exige tempo e paciência. Só após 20 anos de seu plantio uma árvore poderá ter sua casca colhida e, depois disso, a cada dez anos será possível retirar dela outra camada de cortiça.

Submetidas a um longo processo de secagem e tratadas com fungicidas, as capas de cortiça estão prontas para serem recortadas e utilizadas. Suas virtudes são inúmeras: elasticidade, aderência, compressibilidade, longevidade, resistência ao fogo, permeabilidade ao gás e aos líquidos, além de ser natural e biodegradável. Ela tem, no entanto, dois defeitos. Em primeiro lugar, ela é mais cara do que seus sucedâneos sintéticos; em segundo, está sujeita ao ataque de fungos que podem contaminar o vinho, deixando-o com aroma e sabor desagradáveis, estragando-o mesmo. È o chamado bouchoné, que pode acabar tanto com um mero vinho de mesa quanto com um Premeir Cru Classe de Bordeaux , e que já levou frustação a muita gente. Acredita-se que cerca de 5% dos vinhos estão sujeitos a este ataque.

Esses motivos levaram ao desenvolvimento de tampas sintéticas, que vêm ganhando terreno, abocanhando hoje cerca de 8% do enorme mercado mundial. Convêm lembrar que Portugal exporta 1 bilhão de dólares por ano de rolhas de cortiça. As rolhas sintéticas trazem a vantagem de serem mais baratas, além de evitarem o problema da contaminação do vinho por fungos. Sua eficácia tem sido provada principalmente para vinhos mais simples, de consumo mais rápido e de até média guarda. Afinal, não houve tempo suficiente para se avaliar sua eficácia nos vinhos de longa guarda. Nem seria o caso, pois não imagino alguém comprando uma garrafa de um grande Borgonha ou de um Vega Sicilia com garrafa de rolha plástica, muito menos com tampa de rosca. Seria de um mal gosto intolerável. Afinal refinamento e charme fazem parte do ritual do vinho, graças a Deus.

Alguns problemas relativos às rolhas sintéticas devem também ser considerados. Elas não são biodegradáveis. Além disso, existe outro sério problema ambiental, como pude ler em recente reportagem da agência Reuters publicada no jornal O Estado de S. Paulo. Ela nos dá conta que, uma queda acentuada nas vendas de cortiça natural poderia levar os produtores a abandonar os antigos bosques – os “montados” de Portugal e as “dehesas” da Espanha – que contribuem para evitar a desertificação em grandes regiões desses dois países. “Se a tendência atual continuar, os montados e dehesas, ricos em vida selvagem, poderão desaparecer dentro de 20 a 30 anos”, prevê um relatório da Sociedade Real para a Proteção dos Pássaros, da Grã-Bretanha.

De qualquer forma, vamos torcer para que a tradição da rolha de cortiça seja preservada se não pelo refinamento da arte de beber bons vinhos, ao menos como fonte de inspiração dos poetas de amanhã. Afinal, quem poderia se inspirar a compor um bom poema evocando a imagem do pai abrindo uma garrafa de vinho com tampa de rosca?
AGUINALDO ZÁCKIA ALBERT

Publicado na Revista Vinho Magazine edição #45 – 2003

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