2002: O SOL SE LEMBROU DA BORGONHA
16 jan 2003, Posted by Notícias e Artigos inOs enólogos mais experientes costumam dizer que os melhores vinhos começam a ser feitos nos vinhedos, tal a importância que a qualidade da fruta desempenha na elaboração de um vinho. Impossível se fazer um grande vinho a partir de uvas que não tiveram uma boa maturação e que não gozaram de condições climáticas favoráveis, como a ausência de chuvas e a presença do sol nos meses que antecedem a colheita, fundamental para a concentração de açúcares e bons taninos necessários aos bons vinhos.
Num ano em que a natureza pregou várias peças nos produtores de vinho europeus, os vinhateiros da Borgonha sorriem alegremente e agradecem terem sido poupados pelo mal tempo. A Europa se lembra com saudades das últimas colheitas do século que se foi, muito acima da média na maioria de suas regiões. Já 2002 foi desastroso para o leste europeu, notadamente a Áustria, onde o Danúbio chegou a subir 11 metros, destruindo boa parte dos vinhedos, e outras regiões tradicionais como o Piemonte e o norte da Itália, por exemplo.
Na França, Champagne, bem ao norte, teve uma safra excelente, com a possibilidade de ser declarada Vintage, e Bordeaux , apesar do mau tempo da primavera, recuperou-se graças aos dias ensolarados de setembro, e teve uma boa colheita. Enquanto as regiões tradicionalmente ensolaradas do sul e do sudoeste francês , principalmente o Rhône , tiveram seus vinhedos alagados – e mesmo destruídos – pelas chuvas torrenciais de setembro e outubro, obtendo, consequentemente, uma colheita catastrófica, a Borgonha teve uma safra excepcional, bem acima da média.
Situada numa região bem setentrional, onde as condições climáticas sempre foram difíceis, normalmente sujeita ao frio e à umidade excessiva, a Borgonha sempre lutou contra as adversidades do tempo para que principalmente sua uva tinta emblemática, a delicada Pinot Noir, pudesse produzir bons vinhos.
Chablis fica no extremo norte, 160 km acima de Beaune, bem próxima de Paris e da Champagne. O segredo de seu vinho é a geologia, a peculariedade de seu solo: há vários milhões de anos houve um afloramento da camada superior de uma grande área de calcário, submersa pelo mar que então existia na região, fruto de um acúmulo de conchas de ostras que remontam à pré-história. Como se vê, a combinação clássica Chablis-ostras tem uma origem mais longínqua e insuspeitada do que se poderia imaginar…
O Chablis é um vinho duro, mas não áspero, que nos faz recordar minerais e pedras, ao mesmo tempo que se associa ao feno verde. Na região só se produzem vinhos brancos a partir da casta Chardonnay, a denominação ganhou grande renome a partir de meados do século passado, a ponto do nome Chablis ter se tornado, até pouco tempo atrás, sinônimo de vinho branco em países como os EUA.
Divide-se em quatro grupos: os Grand Crus, mais ricos em sabor, originários dos vinhedos mais ao sul e a oeste, que rodeia o rio e o pequeno povoado de Chablis. Vêm logo a seguir os Premiers Crus, menos intensos em aroma e sabor, e com teor alcoólico um pouco mais baixo. Seguem-se o Chablis comum e o Petit Chablis, este com poucos atrativos.
Gérard Vullien, enólogo do Domaine Long-Dépaquit, nos recebe calorosamente na sede da Maison situada bem no centro do charmoso (e minúsculo) vilarejo de Chablis. O domaine é belo, de linhas austeras, e lembra mais o estilo dos châteaux de Bordeaux do que os da Borgonha. O sorriso estampado em seu rosto reflete o sol da tarde e também toda a alegria pela safra excepcional que terminara de colher. “As pessoas lá do sul têm vindo passar alguns dias em Chablis para tomar um pouco de sol e se secar” brinca ele. “Isto nunca aconteceu antes!”. As condições climáticas foram tão favoráveis que a colheita, que acabara de ser feita, começara uma semana antes do normal, no dia 23 de setembro, e não em 1º de outubro, nos revela Vullien.
Enquanto visitamos o Domaine, Vullien faz uma longa explanação sobre Chablis e, principalmente, sobre seu solo, mostrando-nos algumas amostras, onde se percebe claramente as conchas presentes em sua formação. Após uma degustação de seus Premiers e Grands Crus, rumamos para o sul, em direção à Côte-D’Or, com uma “parada técnica” em Auxerre.
A bordo da van, em direção ao sul, podemos apreciar a paisagem magnífica, os vinhedos nas encostas tingidos do dourado que o outono lhe empresta, e pela primeira vez entendo porque a região tem o nome de Côte d’Or.
A Côte d’Or se situa no coração da Borgonha e é composta pela Côte de Nuits e pela Côte de Beaune, e nela estão situados os mais rico e afamados vinhedos da região. Na Côte de Nuits estão os tintos mais ricos e longevos. Aí estão Chambertin, Gevrey-Chambertin, Morey-Saint-Denis, Chambolle-Mussigny, Vougeot, Vosne-Romanée (onde se produz o legendário Romanée-Conti) e Nuits-Saint-Georges. Pelas conversas que tivemos, podemos afirmar que, nesta região mais ao norte da Côte de Nuits, a safra de 2002 atingiu seu ponto mais alto de qualidade, tendo sido colhidas uvas com alto grau de maturação e acidez equilibrada. Podemos então esperar tintos soberbos provenientes destas comunas em que a Pinot Noir reina soberana.
A situação do clima chega a ser curiosa .Ligamos a TV e os noticiários, ao lado das notícias de enchentes do sul, nos falam de uma seca na Borgonha que impeliram as autoridades a impor restrições quanto à lavagem de automóveis e a rega de jardins para que se economize água !
Beaune, cidade medieval plena de charme, é o centro vinícola da região. Lá estão os escritórios e as caves da maioria dos négociants éléveurs da Borgonha . Visitando as dependências da Maison Joseph Drouhin (quase um hectare de caves subterrâneas sob a cidade!) pudemos conversar com o enólogo Jean-Pierre Cropsal. Ele chega com alguns minutos de atraso e está um tanto agitado . Afinal, início de outubro não é a época ideal para visitar vinhateiros em plena operação de colheita e início de vinificação.
Enquanto degustamos alguns de seus melhores vinhos, M. Cropsal nos fala da correria que é vinificar naquele local vinhos provenientes de toda a Borgonha. Quanto à safra 2002, confessa que estava bastante pessimista até agosto, devido ao mal tempo, mas a situação se invertera a partir do início de setembro, quando o sol chegara para ficar. O resultado foi a colheita de uvas com boa maturação e que darão vinhos de alto grau de tanicidade, graças à espessura que as cascas das uvas alcançaram depois dos dias de forte ventania que se seguiram ao término das chuvas de agosto, nos diz Cropsal.
Movidos pela curiosidade (e também pela proximidade), na manhã seguinte saímos bem cedo para Morgon, em pleno Beaujolais. Próximo à Côte-du-Rhône, ao norte de Lyon, em termos administrativos o Beaujolais é parte integrante da Borgonha, mas se formos analisar seu clima, topografia, tipos de solo e variedade de uvas plantadas as diferenças são muitas.
Sua produção é bem maior do que todos os vinhedos situados somados (mais de 1 milhão de hectolitros), basicamente originária da uva Gamay, e pode ganhar as seguintes denominações: Beaujolais (denominação básica e mais comum); Beaujolais Supérieur (quando o teor alcoólico atinge os 10,5º); Beaujolais-Villages (produzido nas colinas ao norte, originário de uma só comuna); Crus de Beaujolais (os de qualidade superior, com 10 denominações possíveis). Além disso temos o efêmero Beaujolais Nouveau, fruto de fermentação carbônica e de vida curtíssima.
É significativo que, à medida que rumamos para o sul, o tempo piore. A chuva fina e o frio foram uma constante durante todo o dia, mas mesmo assim pudemos desfrutar da bela paisagem da região, que não desmereceu a origem de seu nome (beau, jolie). Dominique Piron e sua irmã nos deram uma simpática recepção na pequena sede de sua propriedade. O vinhedo, que acabara de ter suas uvas colhidas, rodeia a casa, e pudemos visitá-lo sob a garoa. Trata-se de uma pequena empresa familiar, com cerca de 15 hectares de vinhedos próprios em algumas das comunas da região, e com grande prestígio dado a qualidade de seus vinhos.
A degustação de seus vinhos transcorreu de forma descontraída e animada, acompanhada de pães, queijos e salame, que veio a se tornar nosso almoço do dia. Dominique está feliz com sua safra recém colhida, e garante que 2002 foi um bom ano para ele. Para provar nos serve um Beaujolais Branco, ainda em fermentação, que mostrou grande potencial. Um Regnié 2001, um Moulin-a-Vent 2000 e um Morgon Py 1999, todos de muito boa qualidade, se seguiram. Mas a grande estrela da jornada foi um Morgon safra 1989, portanto um Cru de Beaujolais com 13 anos de idade! Rico, evoluído e de grande qualidade, surpreendeu a todos pela sua complexidade e, principalmente, sua longevidade. Uma boa experiência a ser guardada desta agradável visita.
O circuito da Borgonha ficaria completo com a visita a duas regiões, o Mâconnais e a Côte Chalonnaise, duas regiões que tiveram maiores problemas com o tempo, com safras um tanto irregulares, dependendo de cada produtor. Retornando do sul em direção a Beaune, o Mâconnais circunda a cidade de Mâcon, ao lado do rio Saône. Apesar de produzir também vinhos tintos a partir da casta Gamay, são os brancos que dão fama a região, principalmente o Pouilly-Fuissé. Passamos ao lado da cidade trafegando por rodovias vicinais, até chegarmos, 55 km após, à cidadezinha de Mercurey, já na Côte Chalonnaise.
Rully, Givry, Montigny e Mercurey são as principais comunas desta região, que produz tanto brancos à base de Chardonnay quanto tintos oriundos da Pinot Noir, correspondendo esta última a 90% de sua produção. Os vinhos aqui são menos encorpados do que os das comunas do norte, na Côte d’Or, mas pode-se encontrar bons vinhos se as uvas forem oriundas dos vinhedos de encostas calcárias voltadas para o sudeste e sudoeste.
No Domaine Michel Juillot, uma bela propriedade situada no centro de Mercurey, da qual podemos vislumbrar seus vinhedos Premier Cru voltados para o sul, pudemos conversar com Laurent Juillot, filho de Michel, e degustar seus melhores vinhos. Ele está contente e diz que sua colheita foi boa, acima da média, e acredita que está fermentando bons vinhos em suas cubas.
Boas notícias, sem dúvida, para os aficionados de tintos e brancos da Borgonha, que dentro de algum tempo estarão disponíveis no mercado. A torcida agora é para que o dólar se mire em São Pedro e também nos dê uma ajudazinha.
AGUINALDO ZÁCKIA ALBERT
Publicado na edição # 37 da revista VINHO MAGAZINE de janeiro de 2003