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O VINHO EM TEMPOS DE GUERRA

16 ago 2002, Posted by degustadoresfronte in Notícias e Artigos

“Ser francês significa lutar por seu país e pelo vinho de seu país”
Claude Terrail, do restaurante Tour d’Argent

O vinho é fruto do trabalho do homem e como tal faz parte de sua cultura. Quando vemos hoje uma indústria vitivinícola triunfante e vencedora como a francesa, os seus vinhos mais finos atingindo cifras estratosféricas no mercado mundial, devemos ter em mente que nem sempre tudo foi um mar de rosas para estes produtores, e que a Europa da primeira metade do século passado era muito diversa da que temos hoje, a grande União Européia, coesa e pacífica, com sua moeda única.

O livro “VINHO&GUERRA”, que acaba de vir a lume pela editora Zahar, trata dos tempos sombrios da II Grande Guerra, quando a França teve seu território invadido pelos alemães, e da batalha que se travou em torno do vinho francês.
Os autores, Don Kladstrup e sua mulher, Patie Kladstrup, são jornalistas norte-americanos, ele, correspondente político da TV de seu país, ela, free lancer, especializada em assuntos franceses. Ambos colaboram com a revista Wine Spectator, e, como tal, têm uma boa formação em vinhos, o que por si só já nos garante um texto sem incorreções técnicas ou “chutes” no assunto, o que é tranquilizador para o público leitor enófilo.
A obra alia uma acurada pesquisa histórica e jornalística a um texto ágil, inquietante, que fisga o leitor pelo anedótico, uma série enorme de fatos e situações envolvendo invasores e invadidos – o vinho no meio – numa saga bem urdida capaz de prender o leitor até a última página.
É como folhear um antigo álbum de fotografias. Os personagens da história são nossos velhos conhecidos, freqüentadores dos catálogos das melhores importadoras, seus descendentes costumam visitar-nos, sempre impecavelmente vestidos, apresentando seus vinhos; vinhos estes que já nos propiciaram inúmeros prazeres. O grande charme do livro é justamente este: o clima de familiaridade que cerca os fatos.
Robert Drouhin, da Borgonha, a família Hugel, da Alsácia, Éric de Rothschild, May-Eliane de Mihaile de Lencquesaing , proprietária do Château Pichon-Longueville-Comtesse de Lalande, a grande dama que nos visitou recentemente e que foi tema de minha última crônica, estes são algumas das fontes dos escritores, que alimentaram o livro com seus importantes depoimentos. Os personagens, por sua vez, além dos próprios depoentes, são figuras notórias do mundo do vinho.
Logo após a invasão da Polônia pelos alemães, em 1º de setembro de 1939, a França—juntamente com outros países do ocidente — declara guerra à Alemanha. O fato encheu de preocupação os vinhateiros, que temiam que a guerra atingisse seus vinhedos, como já acontecera durante a I Guerra, e os destruísse. Para piorar as coisas, a natureza brindou os franceses com uma péssima safra, talvez a pior do século, devido ao mal clima.
As tropas francesas rumaram até a linha Maginot e limitaram-se a esperar o inimigo. Foram sete meses de tediosa espera até a invasão, e as tropas alemãs em pouco tempo arrasaram o inimigo e ocuparam seu território. Tratava-se agora de apossar-se das riquezas francesas, e a maior delas era o vinho. A Alemanha e suas tropas queriam os melhores vinhos franceses e, num primeiro momento, a técnica adotada foi a da pilhagem pura e simples.
Não é preciso dizer que as regiões que mais sofreram foram a Champagne e a Alsácia, grudada à Alemanha e já tendo sido parte integrante dela. Depois dos primeiros tempos de muita selvageria (a casa Moët&Chandon foi praticamente arrasada pelos germânicos), adotou-se uma política mais maleável e racional para que a produção francesa não fosse afetada . Ribbentrop, von Papen, Goebbels, Göring, Speer e muitos outros membros da liderança germânica eram grandes apreciadores dos vinhos franceses e a questão foi, finalmente, encarada com a seriedade de um assunto de estado.
Alemanha nomeou então seus weinführers, senhores do vinho, nas principais regiões produtoras, que passaram a gerir a coisa toda. O objetivo era comprar a maior quantidade de vinho bom possível a bom preço e enviá-lo à Alemanha, onde seria vendido para o resto do mundo a preços superiores para financiar a guerra do Terceiro Reich, além de abastecer o mercado alemão.
Otto Klaebisch, da Matteüs-Müller, produtor de vinhos espumantes e agente da Alemanha de várias casas da Champagne, foi nomeado para esta região. Heinz Bömers, da importadora Reidemeister&Ulrichs, foi designado para Bordeaux. Outros comerciantes alemãos de prestígio foram para outras regiões.
Os weinführers eram amantes e conhecedores de vinho, pessoas refinadas e, como tal, não simpatizantes dos nazistas. Como comerciantes de vinho, sabiam que, mais cedo ou mais tarde, a guerra terminaria mas o comércio do vinho deveria continuar. Além disso, já tinham relações de amizade com o produtores franceses devido ao intercâmbio comercial que faziam antes da guerra. Não tinham, portanto, nenhum interesse em agir de forma brutal ou arbitrária com os parceiros gauleses, e começaram a atuar de forma equilibrada e diplomática, mas sem prejudicar os interesses alemães.
A história segue com histórias pitorescas, os franceses muitas vezes enganando os alemães. Sua suprema vingança foi enviar-lhes a tenebrosa safra de 39 – verdadeiros coquetéis Molotov — além de colocar seus melhores rótulos nos piores vinhos, um sonho que todo enófilo já teve com relação a seus inimigos, um prazer que só seria suplantado ao ouví-los comentar tal zurrapa.
Prisões, fuzilamentos, propriedades confiscadas, a ocultação de judeus perseguidos em alguns châteaux, a reviravolta francesa dos maquis – as tropas americanas a seu lado – perseguindo os boches, mas evitando o combate nos vinhedos mais nobres, como ocorreu em Chalon-sur-Saône, portão sul das encostas da Côte d’Or, temendo a destruição deste precioso vinhedo. Lembravam-se ainda da tragédia da Guerra Franco-Prussiana de 1870, quando as tropas alemãs devastaram os vinhedos de La Tâche, Romanée-Conti e Richebourg.
Lances de heroísmo e tragédia se sucedem no livro. Às vezes o flagelo vem do lado aliado, como narra o correspondente de guerra e escritor britânico Vaughan-Thomas em seu livro “How I Liberated Burgundy”, citado na obra. Para demonstrar seu apreço aos americanos, os franceses resolveram selecionar seus melhores vinhos para presentear as tropas libertadoras, e assim foi feito. O próprio Vaughan-Thomas, um expert, se encarregou de coordenar a coleta e a entregou ao oficial americano, fazendo várias recomendações de como guardar e a que temperatura consumir os vinhos. “”Não se preocupe””, o americano respondeu. “O Doutor sabe tudo sobre esta bebida francesa e, por falar nisso, vou convidá-los para vir tomá-la”.
A grande festa aconteceu, com grande aplomb, num belíssimo palácio do século XVIII, o comando americano recebendo a comitiva francesa ao som de trombetas. Surge então uma coluna de garçons carregando as garrafas em bandejas de prata. Quando percebeu que as garrafas de Borgonha estavam borbulhando suavemente, Vaughn-Thomas sentiu “um baque no coração”. O coronel americano sussurrou então ao seu ouvido: “Estamos com sorte. O Doutor incrementou este negócio com um pouco de álcool etílico!”
Espero sinceramente que a França ganhe também esta nova guerra, agora em nome da civilização e do bom gosto…

Publicado na edição # de 2002 da revista VINHO MAGAZINE

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