UM DIA MUITO ESPECIAL
16 jul 2002, Posted by Notícias e Artigos inAtraídos pelo nosso enorme potencial de consumo, muitos produtores têm visitado o Brasil com objetivo de ampliar suas vendas. Quando se fala de um país de 170 milhões de habitantes e que consome apenas 2 litros de vinho per capita/ano, fica evidente quão boa é a perspectiva de vendas, mesmo se sabendo que boa parte dessa população não chegue a ser, infelizmente, mercado para estes produtos.
Mas isto é uma outra história. O que importa é que estes produtores, trazidos por seus representantes, têm encaminhado muita informação ao nosso público de enófilos e formadores de opinião durante suas palestras nas confrarias de enófilos, ou mesmo em eventos nas importadoras ou restaurantes.
Alguns destes encontros, entretanto, podem ser, por diversas razões, memoráveis. É o caso da presença entre nós, no mês de maio, da sra May-Eliane de Lencquesaing, diretora-proprietária do legendário Château Pichon Longueville – Comtesse de Lalande, Second Cru Classé de Bordeaux.
Fundado em 1689 por Pierre de Rauzan, na comuna de Pauillac, Médoc, o château tem, curiosamente, uma marcante presença feminina em sua história. Seu próprio nome veio de Thérèse, filha de Pierre, que se casou com Jacques de Pichon Longueville, presidente do Parlamento de Bordeaux.
Dos cinco filhos que tiveram três eram mulheres, todos eles herdando partes iguais do espólio com a morte dos pais, e por século e meio mantiveram unida a propriedade. Entretanto, um deles se destacou na condução dos negócios, Virginie de Pichon Longueville, que tornou-se condessa de Lalande por casamento, tendo sido seu nome agregado ao nome do vinho por merecimento.
Em 1925 o domínio mudou de mãos, tendo sido comprado por Edouard Miahile, que o deixou, ao falecer em 1978, à sua filha May-Elaine que esteve conosco e conduziu com grande inteligência a degustação vertical de alguns dos seus vinhos para uma reduzida platéia de enófilos, cerca de 10 pessoas.
Pudemos então privar da companhia desta senhora, de marcante personalidade e profundo conhecimento de vinho, que nos guiou por esta maravilhosa degustação. Foram degustadas as safras de 85, 86, 94, 96 e 98, todas com o estilo da casa, seu vinho conhecido como “o mais feminino do Pauillac”, como bem observou um dos presentes, mas cada um trazendo a marca diferencial da safra e as influências micro-climáticas que sofreram.
Como não poderia deixar de ser, em se tratando de um grande vinho francês, pouco se falou sobre técnicas de vinificação e muito nas condições climáticas e no grau de maturidade das uvas nos vinhedos , ou seja, ênfase no conceito de terroir.
Abordagens como esta têm sido muito negligenciadas entre nós, talvez devido à gradativa perda de presença dos vinhos franceses em nosso mercado e mesmo por um certo descaso na divulgação desta “filosofia de fazer vinho”.
“Música para os ouvidos”, é como poderíamos definir uma degustação como esta, com vinhos excelentes e uma mão segura a nos conduzir, colocando temas para que o grupo refletisse de forma crítica como : “É possível se prever com certeza o futuro de um vinho quando bebido ainda em sua infância, tirado da barrica, como fazem os experts de hoje, visando razões de mercado?”. Ou então, “Deve-se encarar o vinho como um ser vivo, semelhante ao homem, que muitas vezes pode nos surpreender numa determinada idade?” “Não era este o caso do soberbo Pichon 86, que nos foi servido, e tratado com desdém pelos experts que o beberam em sua “infância”, mas que depois se revelou um vinho grandioso? E as notas numéricas? Elas são pertinentes?”
Num certo momento da degustação, na qual a língua francesa e a inglesa se revezavam — numa breve mostra dos milagres de boa convivência que o bom vinho pode propiciar – ao invés de notas e conceitos fez-se a associação dos vinhos a compositores e seus estilos, ficando nítida oposição entre o wagneriano 86, potente e bem estruturado, e o elegante, delicado e macio “Debussy 85”. Critérios plenamente válidos para se abordar grandes vinhos, desde que tais conceitos não sejam banalizados por um tolo.
Seguiu-se um ótimo almoço no restaurante ao lado, a conversa franca regada por um bom Château Bernardotte, também da Pichon, em que muito se conversou sobre gastronomia, música, política, futebol, e –vejam bem vocês – até sobre vinhos! Cinco horas deliciosas passadas com uma dama de enorme simpatia e um agradável grupo de amantes do vinho numa tarde de muito conhecimento e prazer. E o que é mais importante: sem ostentação nem frescura.
Lá pelas 5 me despedi de todos e, ainda tangido pelos deliciosos vapores do bom vinho, praticamente levitei até meu carro, no estacionamento.
A vida real me pegou logo alí, na saída, com um enorme e desagradável congestionamento na Marginal de Pinheiros…
C’est la vie…
AGUINALDO ZÁCKIA ALBERT
Publicado em julho de 2002 na edição # 31 da revista VINO MAGAZINE