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O VINHO NO CINEMA

16 ago 1999, Posted by degustadoresfronte in Notícias e Artigos

O amor ao vinho pode tornar-se uma obsessão, da mesma forma que a ligação com o cinema. Quando as duas se unem vamos ter um maníaco muito especial: o eno-cine-maníaco. Esse verdadeiro “monstro”– no dizer de algumas esposas mais impacientes – pode, nos casos mais severos, terminar seus dias metido em alguma camisa-de-força, tal o número de problemas que pode acarretar à vida familiar.
Os primeiros sintomas da síndrome cinematográfica surgiram quando eu ainda era adolescente, e tornei-me um assíduo freqüentador de cinematecas, sessões especiais e avant-premières. Goddard, Antonioni, Glauber. Os filmes talvez fossem uma porcaria, mas os diretores – ah!, os diretores – eles eram geniais…
Com o passar dos anos, o “rato de cinemateca” foi se eclipsando, dando lugar a um aficcionado quase “normal” pela tela grande: uma sessão a cada semana, quinze dias. Afinal, era preciso encontrar tempo para “outras manias”. E, quando o vinho surgiu em meu caminho, eu estava pronto para mergulhar de cabeça nesse delicioso tonel. Fiquei envolvido por cursos, degustações, viagens por esse maravilhoso mundo. Livros, revistas e, é claro, muitos vinhos bebidos e longas conversas sobre o tema.
Certa vez, pude vivenciar uma experiência nova e poderosa. A visão, ou mesmo a citação, do tema vinho em filmes revelou-se sensacional. Percebi que a, digamos assim, compatibilização vinho-cinema representava a sinergia perfeita…
A Festa de Babette é o exemplo perfeito dessa experiência. Além do jantar ser espetacular, o filme de Gabriel Axel é uma obra-prima, e mesmo assim conseguiu ganhar o Oscar de melhor filme estrangeiro de 1988. A generosidade e a grandeza de espírito nunca foram abordados no cinema de forma tão tocante. Todos se recordam dos vinhos (e pratos) servidos no “vrai dinner français” que a criada Babette, ex-chef do “Café Anglais” de Paris, e naqueles dias uma refugiada política numa vila do norte da Dinamarca, prepara (e paga, gastando todo o dinheiro que ganhara na loteria) para seus convivas: um Amontillado acompanha a sopa de tartarugas; um Champagne Veuve Cliquot 1860 é servido com um delicioso Blinis Demidoff; um soberbo Clos Vougeot 1845 vai à mesa com um prato não menos sensacional, Cailles en Sarcophage. Após a sobremesa e o café, um Cognac Vieux Marke Fine Champagne. Nada mal para as virginais papilas gustativas de um austero grupo de puritanos, exceção feita ao sofisticado general também presente.
Mas lembrar-se disso não basta para entrar para o rol dos enocinemaníacos. O genuíno enocinemaníaco deve saber responder, por exemplo, qual o vinho e qual a safra da garrafa que Cary Grant (homem do FBI) derruba – e quebra – na adega do agente alemão, em sua bela mansão no Rio de Janeiro. Sim, este filme do mestre Hitchcock, Interlúdio (Notorious), passa-se no Rio, onde Grant e a fascinante Ingrid Bergman vivem um tórrido romance. Você sabe a resposta? Ah, então você não é um enocinemaníaco. Trata-se de um Pommard safra 34, talvez a mais cara garrafa de vinho de todos os tempos: ela está cheia de areia com urânio. A propósito, na festa que se realiza na mansão estão servindo champagne a rodo. O agente alemão tinha muito bom gosto…
Em vários outros cults vamos encontrar citações fugazes de vinho, principalmente champagne. Em “Gilda”, dirigido por Charles Vidor, o “triângulo” John Ford, Rita Hayworth, George Macready (dono de um cassino em Buenos Aires), erguem dois brindes com champagne: um celebrando a amizade dos três, outro, pouco depois, amaldiçoando a mulher que tanto atormentara a vida de Ford, a própria Gilda. Alguns metros de celulóide mais à frente, a estonteante Hayworth, cantando Put the blame on Mame, faria o mais sensacional e erótico strip-tease da história do cinema tirando apenas a longa luva de seda de sua mão esquerda (ou seria a direita?). Absolutamente nada a ver com o “É o Tchan” ou com a “ dança da garrafa”…
Ainda sobre o champagne, vale lembrar um filme em que ele não poderia faltar. Não é para menos, afinal o filme chama-se High Society, as músicas são de Cole Porter, e estrelando temos Grace Kelly, Bing Crosby, Frank Sinatra e Louis Armstrong. Kelly e Sinatra bebem champagne enquanto ele canta You are sensational, de Porter. Sinatra (sempre ele) bebe também champagne com Crosby na biblioteca da mansão de Newport. Bing ensina então a Frank como abrir o bar para tomar mais champagne. Para tanto deve pressionar o livro de Darwin no “Harvard Classics” para que o bar surja da parede como por encanto. A cena termina num divertido dueto e com Sinatra já bastante “ baleado”.
Para os fãs da Nouvelle Vague, vale lembrar uma passagem de Uma Mulher para Dois (Jules et Jim), esta obra-prima de François Truffaut que tanto deu o que falar nos anos 60. Não vou contar a história porque o título já diz tudo. Numa determinada cena, o “triângulo” está conversando e Jules/Oskar Werner, o marido alemão de Catherine/Jeanne Moreau, oferece uma cerveja ao francês Jim/Henri Serre, dizendo que já é hora do amigo começar a apreciar esta bebida tão alemã. Catherine, aproveita a deixa para discutir com o marido, dizendo que os franceses (como ela e Jim) não ligam para cerveja pois têm os melhores vinhos do mundo. E cita, de uma enfiada só, uma série enorme de vinhos e regiões, capaz de confundir o mais memorioso dos enocinemaníacos. Ela diz, então: “Temos, sei lá, os Bordeaux, Château Lafite, Ch. Margaux, Ch. Fontenac, Ch. d’Yquem, Saint-Émilion, Saint-Julien e outros melhores. Há também Clos Vougeot, Bourgognes, Romanée, Chambertin, Beaune, Chablis, Montrachet, Volnay e os Beaujolais, e Poully-Fuissé, Moulin-à-Vent, Broully, Saint-Amour…” Os homens continuam bebendo sua cerveja e contando passagens que viveram durante a I Grande Guerra, cada um do seu lado do front. La Moreau retira-se então da sala, muito ofendida.
Fugindo um pouco dos cults, aqueles que apreciam comédias românticas leves podem curtir Surpresas do Coração (French Kiss), com Meg Ryan e Kevin Kline. Kline é um ladrão de jóias francês “fissurado” em vinho, cujo sonho é comprar um pedaço de terra na Provence, formar seu parreiral e fazer seu próprio vinho. Voltando à França, encontra-se com Meg Ryan no avião e, sem que ela perceba, esconde em sua bolsa a muda de uma videira de cepa não revelada envolta num colar de diamantes que roubou, que seriam as sementes de sua empreitada. A bolsa é roubada, reencontrada e os dois vivem um romance de final feliz, típico de filme americano. Numa das cenas, Kline apresenta a Meg uma espécie de Nez du Vin que ele mesmo elaborou, e faz com ela um teste de aromas.
Mas nem tudo são flores na vida de um enocinemaníaco. Existem verdadeiras bombas no mercado, e delas devemos fugir como o diabo foge da cruz. Uma delas é o O Ano do Cometa (The Year of the Comet) e deve ser indicado apenas ao pior inimigo. O filme conta a história da filha de um poderoso negociante de vinhos inglês que, ao avaliar uma adega num castelo da Escócia, encontra uma Jeroboam de Château Laffite, da histórica safra de 1811 (o ano do cometa, seja ele qual for), que pertencera ao próprio Napoleão Bonaparte. Ao final de uma trama mirabolante, a garrafa é leiloada e arrematada por impagáveis 5 milhões de dólares, e prontamente aberta e servida aos presentes por 10 mil dólares a taça. Trata-se de um filme definitivamente bouchoné e deve ser evitado a qualquer custo. Visualmente não chega a comprometer, mas a trama sem complexidade e a persistência dos erros de narrativa por todo filme irritam. Além disso, falta acidez aos diálogos, o vilão (Louis Jourdan) faz comentários de extremo amargor e é totalmente desequilibrado. Pior de tudo: falta corpo à atriz principal! (Penelope Ann Tyler). O final, então, é inverossímil e seguramente desagrada. Um filme que se assiste e se esquece em poucos segundos.
Mas é melhor voltarmos aos clássicos. No magistral Casablanca bebe-se de tudo – afinal a ação se passa quase toda no Ricky’s Bar Americain, de Humphrey Bogart. Licores, whisky, brandies, champagne e até – imaginem vocês – água! Quase no final do filme, o Capitão Renault (Claude Rains) bebe o último copo de uma garrafa de água de Vichy e depois a joga no lixo, numa clara alusão ao pouco caso que fazia do governo colaboracionista de Pétain. Mas duvido que alguém se lembre da marca e do millésime do champagne que servem ao oficial alemão major Strasser quando este visita o Ricky’s. Um verdadeiro enocinemaníaco responderia sem titubear: Veuve Clicquot 1926. Infelizmente, o filme termina de forma melancólica para Ricky/Bogart: ele, no aeroporto de Casablanca em companhia do chef-de-police, Capitão Renault, fala sobre o “início de uma bela amizade” enquanto sua bem-amada Ingrid Bergman acaba de embarcar para Lisboa com o marido, o revolucionário tcheco Victor Lazlo/Paul Henreid. Quem mandou ficar enchendo a cara de whisky o filme todo…
Filmes citados:

“ A Festa de Babette” – Dinamarca
Diretor – Gabriel Axel

“Gilda” – “Gilda” – USA !9… 105 min.
Diretor – Charles Vidor
Com Rita Hayworth, Glenn Ford e George Macready.

“ Alta Sociedade” – (“ High Society”) – USA – 107 min.
Baseado na peça “ Philadelphia Story “, de Phillip Barry
Diretor – Charles Walters
Músicas – Cole Porter
Com Bing Crosby, Grace Kelly, Frank Sinatra e Louis Armstrong

“ Uma Mulher para Dois” – ( “Jules et Jim” ) França – 1961 – 105 min.
Diretor – François Truffaut
Com Jeanne Moreau, Oskar Werner e Henri Serre
Baseado no romance de Henri Pierre Roché

“Surpresas do Coração” – (“ French Kiss”)
Diretor – Lawrence Kasdan
Com Meg Ryan e Kevin Kline

“ O Ano do Cometa” – (“The Year of the Comet”) – USA – 1993 – 102 min.
Diretor e Produtor – Peter Yates
Com Penelope Ann Tyler e Timothy Daly

“ Casablanca “ – (“ Casablanca”) – USA – 1942
Diretor – Michael Curtiz
Com Humphrey Bogart, Ingrid Bergman, Paul Henreid e Claude Rains.

AGUINALDO ZÁCKIA ALBERT

Publicado na revista VINHO MAGAZINE de # 3, de agosto de 1999

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