MONTRACHET REVISITADO
16 maio 1999, Posted by Notícias e Artigos in“Vino, ensenãme el arte de ver mi propria historia
Como si ésta ya fuera ceniza en la memoria”
J. L. Borges
Vinho : bebida alcoólica de amplo consumo, resultante da fermentação total ou parcial do mosto da uva.
Correto. Está lá no Aurélio. Mas, evidentemente, o vinho é muito mais do que isto – esta substância física, palpável, palatável. A verdade é que, durante séculos, esta bebida, como nenhuma outra, fascinou o homem com sua magia, de tal forma que toda a tradição da cultura ocidental está dela impregnada, dos rituais dionisíacos à liturgia cristã.
Sozinho ou acompanhando um bom prato, o vinho pode proporcionar um extraordinário prazer ao homem que souber apreciá-lo. Em tempos remotos, quando ainda não transmitiam o campeonato italiano de futebol nem haviam inventado o jogo de pôquer – e, portanto, era muito difícil se divertir –, o homem encontrava no mau vinho da época uma das raras fontes de prazer e bebia, evidentemente, para embriagar-se e não pelo prazer organoléptico. Com o passar dos séculos os vinhos foram melhorando, os homens, nem tanto, mas ambos conseguiram manter um convívio longo e duradouro, ora o vinho sendo tomado como alimento, ora como um prazer refinado pleno de significados. Tenho o hábito de beber quase diariamente e, embora considere que a abstinência possa ser, em momentos excepcionais, uma coisa boa, creio que deva ser praticada com extrema moderação…
Um bom vinho é sempre generoso, proporcionando além do prazer sensorial verdadeiras “viagens”, remetendo o homem de espírito à história, à geografia, à literatura.
Ao tomar um Corton-Charlemagne, imaginamos o Imperador do Ocidente bebendo o vinho de seu vinhedo, sem a preocupação de que caso ele lhe escorra pela barba venha a tingi-la, afinal ambos são brancos. Abre-se um Brunello, e nos deliciamos, também, com uma paisagem da Toscana; um Jerez nos é oferecido, e nos transportamos a Veneza, onde o herói de Poe empareda seu desafeto vivo (mas bêbado) em sua adega, no extraordinário conto “O Barril de Amontillado”.
Muitos são os caminhos que levam ao vinho, pressupondo-se, é claro, que se goste de bebê-lo. Hábitos familiares, cursos de degustação, a história, a literatura. Para mim, o “gancho” literário foi fundamental.
Quando mais jovem, tive oportunidade de ler Brideshead Revisited, de Evelyn Waugh, no “original francês”, como costumava dizer uma espirituosa amiga de então, já que eu não dominava suficientemente o inglês para curtir toda a riqueza de linguagem desse grande autor (atenção revisão, o autor é um homem), e ele não havia sido traduzido para o nosso idioma. Sendo Waugh um grande apreciador do vinho, há no romance várias passagens citando-o. Numa delas, Charles Flyte, o narrador, janta num pequeno mas refinado bistrô de Paris com Rex Mottram, um arrivista aplicadíssimo nesse perigoso esporte que é o alpinismo social. Flyte o despreza secretamente. Para acompanhar o jantar, pede um Montrachet 1906 e um Clos de Bèze 1904. A ação acontece em meados dos anos 20 e, por isso, imaginei que ambos fossem tintos. Curioso e pouco informado, fui pesquisar e descobri que Montrachet era um branco capaz de uma boa guarda, que a pronúncia certa é Mont /rachet e que os ingleses têm o hábito de beber vinhos mais envelhecidos (sem dúvida, uma boa aula em duas páginas de ficção). O jantar termina com os dois já bem “altos” (seguiu-se um Cognac), Rex falando ininterruptamente de heranças e tragédias financeiras de conhecidos, mas ambos contentes fumando seus charutos. Flyte nos narra, então: “Deliciei-me com o borgonha. Parecia ser um lembrete de que o mundo era um lugar mais antigo e melhor do que Rex o imaginava, de que a humanidade , em seu longo sofrimento, aprendera uma sabedoria diferente…” A magia do vinho se manifestara, propiciando uma noitada agradável a dois espíritos tão diversos e despertando no leitor (eu) um interesse maior pelo vinho.
Anos mais tarde tive o prazer de tomar um grande Montrachet e pude entender melhor a literatura de Waugh…
Como se vê, a experiência do vinho pode ser única, multifacetada e plena de evocações. Termino parodiando “O Bardo”: “há muito mais coisas entre a fermentação malolática e os aromas empireumáticos do que sonha nossa vã filosofia”.
AGUINALDO ZÁCKIA ALBERT
Publicado na edição de # 2 , de maio de 1999, da revista VINHO MAGAZINE