O
RITUAL E O VINHO
AGUINALDO ZÁCKIA ALBERT
Outro dia, relendo o livro Boitempo, de Carlos Drummond de Andrade,
tropecei -- como numa pedra no meio do caminho -- no poema “O
Vinho”. Já nem me lembrava de sua existência, nem
de tê-lo lido, e o sorvi com grande prazer . No livro nosso poeta
maior rememora sua vida simples de garoto e adolescente em Itabira,
passada com a mãe, doce e serena, e o pai severo.
“O
vinho à mesa, liturgia”, eis o verso que abre o poema ,
e que também sintetiza o poema, que nos fala do ritual do pai,
tal qual um “grande sacerdote”, sacando a rolha da garrafa
de vinho, sob o olhar atento e respeitoso da família e do jovem
Drummond. “Respeito silencioso/paira sobre a toalha./A garrafa
espera o gesto,/o saca-rolha espera o gesto,/ a família espera
o gesto/ que há de ser lento e ritual”. O poema me levou
a pensar na nova tendência da utilização das rolhas
sintéticas e , mais do que isso, nas chamadas screwcaps, que
utilizam o sistema de rosca, que, embora pareçam eficientes,
considero abomináveis.
Existem
evidências históricas de que a rolha começou a ser
utilizada na Grécia antiga, quando o homem despertou para a necessidade
de conservar melhor o vinho. Ela servia para tapar as ânforas
usadas na época. Devido talvez à ocupação
do sul da Península Ibérica (região de onde provem
a cortiça) pelos mouros, a partir do século VIII, sua
utilização caiu em desuso durante a Idade Média.
Ilustrações da época nos mostram barris tampados
com tocos de madeira envolvidos em tecido.
Durante
o século XVII, com o desenvolvimento das garrafas de vidro, a
rolha de cortiça retorna, desta vez para ficar. (Pelo menos até
agora!). Extraída da casca do sobreiro (Quercus Suber), árvore
que cresce na Espanha e em Portugal, regiões responsáveis
por 80% da produção mundial, a rolha de cortiça
revelou-se imbatível na vedação das garrafas de
vidro.Sua fabricação exige tempo e paciência. Só
após 20 anos de seu plantio uma árvore poderá ter
sua casca colhida e, depois disso, a cada dez anos será possível
retirar dela outra camada de cortiça.
Submetidas a um longo processo de secagem e tratadas com fungicidas,
as capas de cortiça estão prontas para serem recortadas
e utilizadas. Suas virtudes são inúmeras: elasticidade,
aderência, compressibilidade, longevidade, resistência ao
fogo, permeabilidade ao gás e aos líquidos, além
de ser natural e biodegradável. Ela tem, no entanto, dois defeitos.
Em primeiro lugar, ela é mais cara do que seus sucedâneos
sintéticos; em segundo, está sujeita ao ataque de fungos
que podem contaminar o vinho, deixando-o com aroma e sabor desagradáveis,
estragando-o mesmo. È o chamado bouchoné, que pode acabar
tanto com um mero vinho de mesa quanto com um Premeir Cru Classe de
Bordeaux , e que já levou frustação a muita gente.
Acredita-se que cerca de 5% dos vinhos estão sujeitos a este
ataque.
Esses
motivos levaram ao desenvolvimento de tampas sintéticas, que
vêm ganhando terreno, abocanhando hoje cerca de 8% do enorme mercado
mundial. Convêm lembrar que Portugal exporta 1 bilhão de
dólares por ano de rolhas de cortiça. As rolhas sintéticas
trazem a vantagem de serem mais baratas, além de evitarem o problema
da contaminação do vinho por fungos. Sua eficácia
tem sido provada principalmente para vinhos mais simples, de consumo
mais rápido e de até média guarda. Afinal, não
houve tempo suficiente para se avaliar sua eficácia nos vinhos
de longa guarda. Nem seria o caso, pois não imagino alguém
comprando uma garrafa de um grande Borgonha ou de um Vega Sicilia com
garrafa de rolha plástica, muito menos com tampa de rosca. Seria
de um mal gosto intolerável. Afinal refinamento e charme fazem
parte do ritual do vinho, graças a Deus.
Alguns
problemas relativos às rolhas sintéticas devem também
ser considerados. Elas não são biodegradáveis.
Além disso, existe outro sério problema ambiental, como
pude ler em recente reportagem da agência Reuters publicada no
jornal O Estado de S. Paulo. Ela nos dá conta que, uma queda
acentuada nas vendas de cortiça natural poderia levar os produtores
a abandonar os antigos bosques – os “montados” de
Portugal e as “dehesas” da Espanha – que contribuem
para evitar a desertificação em grandes regiões
desses dois países. “Se a tendência atual continuar,
os montados e dehesas, ricos em vida selvagem, poderão desaparecer
dentro de 20 a 30 anos”, prevê um relatório da Sociedade
Real para a Proteção dos Pássaros, da Grã-Bretanha.
De
qualquer forma, vamos torcer para que a tradição da rolha
de cortiça seja preservada se não pelo refinamento da
arte de beber bons vinhos, ao menos como fonte de inspiração
dos poetas de amanhã. Afinal, quem poderia se inspirar a compor
um bom poema evocando a imagem do pai abrindo uma garrafa de vinho com
tampa de rosca?
Publicado na Revista Vinho Magazine edição #45 –
2003