O
VINHO EM TEMPOS DE GUERRA
“Ser
francês significa lutar por seu país e pelo vinho de seu
país”
Claude Terrail, do restaurante Tour d’Argent
O vinho é fruto do trabalho do homem e como tal faz parte de
sua cultura. Quando vemos hoje uma indústria vitivinícola
triunfante e vencedora como a francesa, os seus vinhos mais finos atingindo
cifras estratosféricas no mercado mundial, devemos ter em mente
que nem sempre tudo foi um mar de rosas para estes produtores, e que
a Europa da primeira metade do século passado era muito diversa
da que temos hoje, a grande União Européia, coesa e pacífica,
com sua moeda única.
O livro “VINHO&GUERRA”, que acaba de vir a lume pela
editora Zahar, trata dos tempos sombrios da II Grande Guerra, quando
a França teve seu território invadido pelos alemães,
e da batalha que se travou em torno do vinho francês.
Os autores, Don Kladstrup e sua mulher, Patie Kladstrup, são
jornalistas norte-americanos, ele, correspondente político da
TV de seu país, ela, free lancer, especializada em assuntos franceses.
Ambos colaboram com a revista Wine Spectator, e, como tal, têm
uma boa formação em vinhos, o que por si só já
nos garante um texto sem incorreções técnicas ou
“chutes” no assunto, o que é tranquilizador para
o público leitor enófilo.
A obra alia uma acurada pesquisa histórica e jornalística
a um texto ágil, inquietante, que fisga o leitor pelo anedótico,
uma série enorme de fatos e situações envolvendo
invasores e invadidos – o vinho no meio – numa saga bem
urdida capaz de prender o leitor até a última página.
É como folhear um antigo álbum de fotografias. Os personagens
da história são nossos velhos conhecidos, freqüentadores
dos catálogos das melhores importadoras, seus descendentes costumam
visitar-nos, sempre impecavelmente vestidos, apresentando seus vinhos;
vinhos estes que já nos propiciaram inúmeros prazeres.
O grande charme do livro é justamente este: o clima de familiaridade
que cerca os fatos.
Robert Drouhin, da Borgonha, a família Hugel, da Alsácia,
Éric de Rothschild, May-Eliane de Mihaile de Lencquesaing , proprietária
do Château Pichon-Longueville-Comtesse de Lalande, a grande dama
que nos visitou recentemente e que foi tema de minha última crônica,
estes são algumas das fontes dos escritores, que alimentaram
o livro com seus importantes depoimentos. Os personagens, por sua vez,
além dos próprios depoentes, são figuras notórias
do mundo do vinho.
Logo após a invasão da Polônia pelos alemães,
em 1º de setembro de 1939, a França—juntamente com
outros países do ocidente -- declara guerra à Alemanha.
O fato encheu de preocupação os vinhateiros, que temiam
que a guerra atingisse seus vinhedos, como já acontecera durante
a I Guerra, e os destruísse. Para piorar as coisas, a natureza
brindou os franceses com uma péssima safra, talvez a pior do
século, devido ao mal clima.
As tropas francesas rumaram até a linha Maginot e limitaram-se
a esperar o inimigo. Foram sete meses de tediosa espera até a
invasão, e as tropas alemãs em pouco tempo arrasaram o
inimigo e ocuparam seu território. Tratava-se agora de apossar-se
das riquezas francesas, e a maior delas era o vinho. A Alemanha e suas
tropas queriam os melhores vinhos franceses e, num primeiro momento,
a técnica adotada foi a da pilhagem pura e simples.
Não é preciso dizer que as regiões que mais sofreram
foram a Champagne e a Alsácia, grudada à Alemanha e já
tendo sido parte integrante dela. Depois dos primeiros tempos de muita
selvageria (a casa Moët&Chandon foi praticamente arrasada pelos
germânicos), adotou-se uma política mais maleável
e racional para que a produção francesa não fosse
afetada . Ribbentrop, von Papen, Goebbels, Göring, Speer e muitos
outros membros da liderança germânica eram grandes apreciadores
dos vinhos franceses e a questão foi, finalmente, encarada com
a seriedade de um assunto de estado.
Alemanha nomeou então seus weinführers, senhores do vinho,
nas principais regiões produtoras, que passaram a gerir a coisa
toda. O objetivo era comprar a maior quantidade de vinho bom possível
a bom preço e enviá-lo à Alemanha, onde seria vendido
para o resto do mundo a preços superiores para financiar a guerra
do Terceiro Reich, além de abastecer o mercado alemão.
Otto Klaebisch, da Matteüs-Müller, produtor de vinhos espumantes
e agente da Alemanha de várias casas da Champagne, foi nomeado
para esta região. Heinz Bömers, da importadora Reidemeister&Ulrichs,
foi designado para Bordeaux. Outros comerciantes alemãos de prestígio
foram para outras regiões.
Os weinführers eram amantes e conhecedores de vinho, pessoas refinadas
e, como tal, não simpatizantes dos nazistas. Como comerciantes
de vinho, sabiam que, mais cedo ou mais tarde, a guerra terminaria mas
o comércio do vinho deveria continuar. Além disso, já
tinham relações de amizade com o produtores franceses
devido ao intercâmbio comercial que faziam antes da guerra. Não
tinham, portanto, nenhum interesse em agir de forma brutal ou arbitrária
com os parceiros gauleses, e começaram a atuar de forma equilibrada
e diplomática, mas sem prejudicar os interesses alemães.
A história segue com histórias pitorescas, os franceses
muitas vezes enganando os alemães. Sua suprema vingança
foi enviar-lhes a tenebrosa safra de 39 – verdadeiros coquetéis
Molotov -- além de colocar seus melhores rótulos nos piores
vinhos, um sonho que todo enófilo já teve com relação
a seus inimigos, um prazer que só seria suplantado ao ouví-los
comentar tal zurrapa.
Prisões, fuzilamentos, propriedades confiscadas, a ocultação
de judeus perseguidos em alguns châteaux, a reviravolta francesa
dos maquis – as tropas americanas a seu lado – perseguindo
os boches, mas evitando o combate nos vinhedos mais nobres, como ocorreu
em Chalon-sur-Saône, portão sul das encostas da Côte
d’Or, temendo a destruição deste precioso vinhedo.
Lembravam-se ainda da tragédia da Guerra Franco-Prussiana de
1870, quando as tropas alemãs devastaram os vinhedos de La Tâche,
Romanée-Conti e Richebourg.
Lances de heroísmo e tragédia se sucedem no livro. Às
vezes o flagelo vem do lado aliado, como narra o correspondente de guerra
e escritor britânico Vaughan-Thomas em seu livro “How I
Liberated Burgundy”, citado na obra. Para demonstrar seu apreço
aos americanos, os franceses resolveram selecionar seus melhores vinhos
para presentear as tropas libertadoras, e assim foi feito. O próprio
Vaughan-Thomas, um expert, se encarregou de coordenar a coleta e a entregou
ao oficial americano, fazendo várias recomendações
de como guardar e a que temperatura consumir os vinhos. “”Não
se preocupe””, o americano respondeu. “O Doutor sabe
tudo sobre esta bebida francesa e, por falar nisso, vou convidá-los
para vir tomá-la”.
A grande festa aconteceu, com grande aplomb, num belíssimo palácio
do século XVIII, o comando americano recebendo a comitiva francesa
ao som de trombetas. Surge então uma coluna de garçons
carregando as garrafas em bandejas de prata. Quando percebeu que as
garrafas de Borgonha estavam borbulhando suavemente, Vaughn-Thomas sentiu
“um baque no coração”. O coronel americano
sussurrou então ao seu ouvido: “Estamos com sorte. O Doutor
incrementou este negócio com um pouco de álcool etílico!”
Espero sinceramente que a França ganhe também esta nova
guerra, agora em nome da civilização e do bom gosto...
Publicado
na edição # de 2002 da revista VINHO MAGAZINE