Degustadores Sem Fronteiras | BORGONHA, A TRADIÇÃO E O CHARME DO VINHO FRANCÊS
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BORGONHA, A TRADIÇÃO E O CHARME DO VINHO FRANCÊS

16 ago 2008, Posted by degustadoresfronte in Notícias e Artigos

Não se sabe ao certo quem introduziu a vinha nessa região situada bem no coração da França, mas podemos afirmar que os invasores romanos já a encontraram ali quando chegaram, por volta do século II d. C.. Os povos celtas que a habitavam já cultivavam a vinha nessa época e a influência romana foi fundamental para que se produzisse bom vinho na região. Dados históricos nos permitem falar em uma vitivinicultura borgonhesa desenvolvida em termos comerciais já no século IV.

Com a desintegração do Império Romano, a região foi tomada por uma série de povos bárbaros vindos do norte. Sucessivamente Francos, Alamanos e Vândalos invadiram a região, chegando depois os Burgúndios, povo originário da Escandinávia, que ali se fixou e emprestou seu nome a essas terras formando um grande reino que se estenderia de Dijon a Lyon.

Esse povo tomou para si a tradição romana da vitivinicultura e a conduziu pela história. Mais tarde, com a conversão da população local ao cristianismo, coube à Igreja, principalmente aos monges beneditinos de Cluny, cuidar com carinho da manutenção dos vinhedos e da produção do vinho. Resumindo bastante a história, o vinho da Borgonha chega aos nossos dias como um dos dois vinhos mais prestigiados da França – dividindo as preferências com os vinhos de Bordeaux — e de todo o mundo.

O paralelo existente entre as duas regiões é bastante curioso e merece ser citado. Se em Bordeaux nós temos uma forte influência protestante, devido à sua proximidade com a Inglaterra, na Borgonha a presença da Igreja e de seus monges –os grandes “ enólogos” da Idade Média – é fortíssima. Em Bordeaux encontramos propriedades relativamente grandes, chamadas de Châteaux; na Borgonha predominam as pequenas propriedades, geralmente com gestão familiar, normalmente denominadas Domaines. Os vinhos bordaleses – tanto os tintos quanto os brancos— são vinhos de corte ou mescla onde entram várias uvas; o da Borgonha é mono-varietal. Os tintos de Bordeaux, onde predominam as uvas Cabernet Sauvignon e a Merlot, são mais adstringentes, viris e longevos, sendo tradicionalmente associados aos valores masculinos; na Borgonha o vinho é mais amável e delicado, o que leva a ser definido como mais feminino. Como se pode ver, as diferenças não são poucas entre as duas mais notáveis regiões francesas, e no entanto os vinhos de ambas podem ser formidáveis, cabendo ao gosto de cada um fazer a escolha.

O aficionado do vinho é muitas vezes surpreendido por vinhos medíocres, pelos quais pagou uma soma considerável, e dos quais esperava muito mais. Por outro lado, a experiência de se degustar um grande Borgonha proporciona um prazer enorme e muitas vezes inesquecível. É nesse terreno incerto, de altos e baixos, que deve se mover o enófilo para fazer sua escolha, sendo desnecessário dizer que uma boa dose de experiência é muito importante para evitar surpresas. Denominações de origem, crus, produtores, safras, em nenhuma outra região uma análise é tão importante para se fazer uma escolha quanto na terra da caprichosa uva Pinot Noir.

Conhecida pela excelência de seus vinhos, a Borgonha é também considerada a capital gastronômica da França. Notável pela beleza de sua paisagem, seu patrimônio histórico e arquitetônico medieval é riquíssimo e a beleza de cidades como Beaune é inesquecível.Os resquícios da antigo esplendor não é facilmente encontrado quando se viaja pelo campo, e o que se vê hoje é a beleza simples e rústica de seus campos e construções. As grandes propriedades não mais existem; deram lugar a pequenos lotes de terra depois que Napoleão realizou a sua reforma agrária, dividindo as terras da Igreja. A fragmentação dos vinhedos hoje é tão grande que a média das propriedades é de pouco mais de 1 hectare. A Clos de Vougeot, por exemplo, conta com mais de 60 proprietários em seus 50 hectares.
Borgonha em números

Extensão dos vinhedos – 24 000 hectares
Produção – 1 200 000 hl/ano
Cor dos vinhos – 52% brancos/ 48% tintos

Localização, solo e clima

É surpreendente que uma região localizada numa zona de clima tão frio e hostil (estamos falando do paralelo 47º de latitude norte!) possa produzir vinhos tintos de tão alta qualidade.

O clima da Borgonha é do tipo continental , com invernos bastante rigorosos e primaveras sujeitas a muitas geada. Devido à situação favorável de seus vinhedos, localizados em encostas com declives suaves e com boa exposição ao sol (orientados nos sentidos sul, sudeste e leste), as uvas ficam protegidas das geadas e dos ventos, o que torna possível que o cultivo da vinha tenha sucesso. Os outonos secos e os verões quentes vão também contribuir para a maturação das uvas. A média anual de pluviosidade é de 690 ml.

A altitude média da região é de 220 metros. São muitas as variedades de solos na região, predominando no entanto os sub-solos calcários e pedregosos. Tais composições de solo mudam em distâncias relativamente curtas, e , associadas às variáveis microclimáticas, vão produzir um grande número de terroirs , fator determinante para que haja um grande número de denominações de origem e de crus.
O Conceito de Terroir

Como a nossa saudade portuguesa, o conceito de terroir não é de fácil tradução, e é muito caro aos franceses, principalmente aqueles da Borgonha. Não se trata apenas do solo, do terreno, mas a eles devemos somar a idéia das substâncias que compõem o sub-solo, a inclinação do terreno, sua drenagem e inclinação, e outros conceitos microclimáticos, como a insolação. A todos esses fatores deve-se acrescentar até mesmo o fator humano, as características culturais do homem que ali trabalha. Dessa forma, o verdadeiro vinho borgonhês deve expressar seu terroir antes de qualquer coisa. Para que isso aconteça, vários preceitos são seguidos : uso de leveduras naturais, baixa produção, pouca ou nenhuma filtragem, uso moderado do carvalho, etc..
Regiões

Apesar de sua área produtora não ser muito extensa (representa apenas 1/6 parte da de Bordeaux), são produzidos ali alguns dos melhores vinhos da França. E também, na média, os mais caros. Eis os seus principais vinhedos da Borgonha, caminhando do Norte para o Sul:

1- Chablis – ( 4 000 ha ) É a região mais setentrional da Borgonha, 160 km ao norte de Beaune, bem próxima de Paris e da Champagne. O clima da zona é tremendamente rude e frio, e no entanto é capaz de produzir brancos formidáveis. O segredo é sua geologia: o afloramento da camada superior de uma grande área submersa de calcáreo, fruto de um acúmulo de conchas de ostras que remontam à pré-história. Como se vê, a combinação clássica Chablis-ostras tem uma origem mais longínqua e insuspeitada do que se poderia imaginar.

O Chablis é um vinho duro, mas não áspero, que nos faz recordar minerais e pedras, ao mesmo tempo que se associa ao feno verde. Um Chablis Grand Cru tem grande personalidade, é austero, longo, envelhece bem e vai ganhando um leve e delicioso amargor com a idade, perdendo aos poucos seus reflexos verdes, uma de suas marcas registradas.

O Chablis divide-se em 4 grupos: os Grands Crus, mais ricos em sabor, originários de uma região mais ao sul e a oeste, que rodeia o rio e o pequeno povoado de Chablis. São vinhos que alcançam notável complexidade com a idade. O Les Clos e o Vaudésir são os melhores. Os Premiers Crus vêm logo a seguir, sendo menos intensos em aroma e sabor do que os primeiros, e com teor alcoólico mais baixo. Ainda assim, são muito bons. Seguem-se o Chablis comum e o Petit Chablis, este de poucos atrativos.

2 – Côte d ‘Or – Faixa estreita de encostas situada no centro da Borgonha, se estende de Dijon a Santenay.. Produz tintos e brancos notáveis. Divide-se em duas partes: Côte de Nuits (ao norte, 1 500 ha) e Côte de Beaune (ao sul, 3 000 ha), e é o mais rico e afamado dentre os vinhedos da região.

Na Côte de Nuits (1 500 ha) vamos encontrar os tintos mais ricos, longevos e de maior prestígio. É a região de Chambertin, Gevrey-Chambertin, Morey-Saint-Denis, Chambolle-Mussigny, Vougeot, Vosne-Romanée (onde se produz o legendário Romanée-Conti) e Nuits-St-Georges.

A Côte de Beaune (3 000 ha) produz os melhores brancos do planeta, todos à base de Chardonnay, sendo seus principais vinhedos Aloxe-Corton (berço do Corton-Charlemagne), Pommard (produtor de tintos), Volnay, Mersault, Puligny-Montrachet (onde vamos encontrar o melhor, mais famoso e caro dos brancos, o Montrachet) e Chassagne-Montrachet.

3 – Côte Chalonnaise ( 1 500 ha) – Mais ao sul, e menos importante que a anterior, estão ali Rully, Mercurey, Givry e Montagny, pequenos vilarejos produtores de vinhos brancos e tintos com melhores preços.

4 – O Mâconnais ( 5 000 ha) – Junto ao rio Saône encontramos a cidade de Mâcon, 55 km ao sul de Chalon. Produz o Mâcon, tinto e branco, vinhos com menos atrativos do que os anteriores. Já o Pouilly-Fuissé (sempre branco) é um vinho delicado e muito interessante.Outros Crus : Pouilly-Vinzelles, Pouilly-Loché e Saint-Veran.

5 – O Beaujolais (22 000 ha) – Vale aqui como uma citação. É o vinhedo que fica mais ao sul, próximo à Côte-du-Rhône, ao norte de Lyon, e poderia merecer um capítulo à parte. Em termos administrativos, o Beaujolais é parte da grande Borgonha, mas se formos analisar seu clima, topografia, tipos de solo e variedades de uvas plantadas, as diferenças são muitas. Sua produção é bem maior do que todos os vinhedos situados ao norte somados (mais de 1 milhão de hl), basicamente originária da uva Gamay. O Beaujolais é um vinho leve, frutado, agradável mas de pouca complexidade. Um vinho para ser bebido, não para ser degustado, como observa muito bem Lichine. Pode ganhar as seguintes denominações: Beaujolais (denominação básica e mais comum); Beaujolais Supérieur (quando o teor alcoólico atinge os 10,5); Beaujolais-Villages ( produzido nas colunas ao norte, originário de uma cidade (ou comuna) apenas; Crus de Beaujolais (os de qualidade superior, com 10 denominações possíveis) e o emergente Beaujolais Nouveau, fruto de fermentação carbônica e de vida curtíssima.

AGUINALDO ZÁCKIA ALBERT
Publicado na edição #30 / 2008 da revista ADEGA

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