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VIOLÊNCIA E GLAMOUR SOBRE O SOLO DA CHAMPAGNE

16 nov 2006, Posted by degustadoresfronte in Notícias e Artigos

“Lembrem-se cavalheiros, não é só pela França que estamos lutando, é pela Champagne também”
Discurso de Winston Churchill durante a Segunda Grande Guerra

O champanhe é considerado a mais alegre e glamourosa das bebidas. Seu nome é associado às comemorações e às festas onde imperam a descontração e a alegria mundana. É muito difícil imaginar que a região que produz esse maravilhoso vinho, a Champagne, tenha um passado histórico marcado por tantas conflagrações e tragédias, como nos mostra o casal Don e Petie Kladstrup, em seu novo livro “CHAMPAGNE” (Jorge Zahar Editor, 223 páginas, R$ 34,00).

Autores do consagrado best-seller “VINHO & GUERRA” (Jorge Zahar Editor, 254 páginas, 36,00) lançado aqui em 2002, que tanto sucesso obteve não só no Brasil mas também em todo o mundo, esse simpático casal de jornalistas norte-americanos apaixonados pela França e por seus vinhos esteve entre nós recentemente lançando seu novo livro. Lá fui eu, com meu velho exemplar sob o braço, comprar o novo livro e , evidentemente, solicitar uma dedicatória para ambos os volumes, e trocar dois dedos de prosa com os autores. Afinal, fui o autor da primeira resenha sobre seu primeiro livro a sair em revistas brasileiras, publicada em 2002, nessa mesma Vinho Magazine, com o título de “O Vinho em Tempos de Guerra”.

Me recordo muito bem. Eu estava no aeroporto de Guarulhos aguardando um vôo para Belém do Pará, onde ministraria um curso de vinhos. Entrei na livraria, vi o livro — que acabava de ser lançado e sobre o qual não tinha nenhuma referência — e o comprei para me entreter durante a viagem. O livro me surpreendeu pela sua qualidade e só consegui largá-lo tarde da noite, já no hotel, após ter virado sua última página, tal foi a forma com que fui envolvido por sua bem desenvolvida trama.

Se em “Vinho & Guerra” o foco era a ocupação alemã do território francês durante a Segunda Grande Guerra, “Champanhe” trata dos inúmeros conflitos ocorridos na região de Champagne durante sua longa história tendo ainda como principais personagens seus vizinhos alemães. Situada no nordeste da França, a Champagne sempre foi uma importante rota comercial por onde passavam mercadorias no sentido norte- sul (rota Flandres-Suiça) da Europa, bem como das regiões ocidentais e orientais da Europa (rota Paris-Reno). Importante e muito rica, foi objeto de cobiça por largos períodos da história. Alvo de uma série enorme de invasões, vários historiadores consideram a Champagne a região do planeta mais banhada em sangue.

Os autores nos contam como, nos campos de Châlons-sur-Marne, em 455, as tropas do terrível Átila, rei dos Hunos, com cerca de 700 000 homens, foram repelidas pela coalizão ocidental formada por romanos, gauleses, visigodos e francos. O sangue de 200 000 homens, mortos num só dia, tingiu seu solo calcário nessa pavorosa batalha. A isso se seguiram a Guerra dos Cem Anos, a Guerra dos Trinta Anos, uma série de lutas religiosas , a Guerra de La Fronde, as Guerras Napoleônicas e as guerras pela sucessão espanhola, todas elas travadas principalmente na Champagne.

No entanto, o livro se concentra mais na história mais recente da região, principalmente nos fatos envolvendo a Primeira Grande Guerra, que marcou a história por sua violência excessiva, e na qual essa região francesa tão próxima da Alemanha tanto sofreu. A invasão, as batalhas, o bombardeio de populações civis, principalmente em Reims , que ficou praticamente em ruínas, inclusive sua bela catedral, e outros fatos marcantes são narrados num estilo ágil pelos autores. Também fatos da Segunda Grande Guerra, que em parte já haviam sido abordados em “Vinho & Guerra”, voltam à berlinda. E em meio a isso tudo, a fibra do vinhateiro champenois e o amor a seu vinho, fazendo a colheita das uvas e vinificando-as sob o terrível bombardeio inimigo, buscando manter a tradição de seu vinho nas mais adversas situações.

Tais esforços sem dúvida valeram a pena. O champanhe hoje é o vinho francês de maior prestígio internacional e suas exportações batem recordes num momento em que o vinho francês experimenta uma série de reveses. Além disso, trata-se de um vinho único, uma unanimidade, que reina sem rivais sobre os outros espumantes. Pode-se discutir sobre a supremacia de bordeaux, borgonhas, barolos e tops do Novo Mundo, mas nunca sobre sua supremacia sobre seus pares no mundo dos vinhos espumantes.

Fatos pitorescos também são narrados, como a predileção que o Chanceler de Ferro alemão Otto Von Bismarck tinha por essa bebida, que o ajudava a “livrá-lo dos ventos”, vítima que era de flatulência crônica, acontecimentos curiosos da vida mundana envolvendo o champanhe ou as aventuras do ousado e inteligente Charles-Camille Heidsick.

Enfim, um livro estimulante como uma boa taça de champanhe, que merece ser lido e degustado, que retoma um pouco a abordagem mais histórica e cultural do vinho, abordagem essa que vem sendo deixada um pouco de lado pela projeção exagerada dada a textos mais técnicos e ligados à degustação.

AGUINALDO ZÁCKIA ALBERT

Publicado na Revista Vinho Magazine #70, de novembro de 2006

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