O
ELIXIR DO AMOR, OU O VINHO NA ÓPERA
AGUINALDO ZÁCKIA ALBERT
Creio que nunca se falou tanto na harmonização do rei
das bebidas, que é o vinho, com a comida. Realizam-se cursos
em que o noivo é carregado por toda a parte em busca de uma bela
noiva para que se realize um casamento perfeito. Depois de muita caminhada,
volta-se com ele para casa, e se percebe que a esposa ideal estava bem
ali, em baixo de nossos narizes: a noiva é, quase invariavelmente,
o prato típico da região do vinho.
Quando se pretende harmonizar o vinho com uma das artes também
não é preciso caminhar muito. A primeira manifestação
artística que nos ocorre é a ópera. A ópera,
na verdade, não é apenas uma manifestação
musical, mas uma obra teatral posta em música, em que ao canto
(que tem o papel preponderante) se somam o acompanhamento orquestral,
o libreto, o texto do canto, o cenário, etc.
Assim como os bons Chianti, a ópera nasceu em Firenze em fins
do século XVI, e seus pais foram os humanistas italianos. As
tentativas de imitar as tragédias gregas haviam fracassado, quando
se descobriu que as peças de Sófocles e Eurípedes
eram acompanhadas, nas representações, por música.
Criou-se então esse novo gênero músico-teatral –
a ópera ou melodramma, como também se dizia em italiano
– pensando-se em ressuscitar a tragédia grega.
Vinho e ópera; ópera e vinho. As afinidades são
enormes, e não podemos pensar num matrimônio tão
feliz, tão veramente italiano. Rossini não devia estar
totalmente convencido disso: julgando que o Barbeiro de Sevilha e a
Cenerentola não fossem suficientes para garantir sua glória
futura, além de desejar – como toda criatura – encontrar
seu casamento perfeito, bom gourmet que era, inventou o delicioso filé
a Rossini para não correr nenhum risco...
Molho meu pedaço de pão (italiano, é claro!) na
taça de vinho da memória, e já começo a
recordar as aulas de canto e os ensaios de meu pai, jovem tenor, no
pequeno apartamento da maestrina Hermínia Russo, na Avenida Duque
de Caxias. Anos 50, fazia muito frio, garoava. São Paulo era
uma cidade muito mais civilizada e as pessoas pacatas podiam morar no
“centrão” sem nenhum problema. Assisti muitas óperas
na coxia do Teatro Municipal, meu pai atuando, e eu acompanhando o solfejo
e o nervosismo dos cantores antes de entrarem em cena. Terminada a apresentação,
íamos comer um belo bauru ou uma fritada no Ponto Chic do Largo
do Payssandu, eu, garoto ainda, acompanhando com o olhar aqueles senhores
muito elegantes em seus smokings traçando seus sanduíches
ao lado do balcão de mármore branco. Mas isso é
uma outra história...
Pois bem, senhores, foi pensando nesse casamento por excelência
que a SOCIEDADE BRASILEIRA DOS AMIGOS DO VINHO – SP realizou no
dia 27 de maio último uma noite lírica com o tema O VINHO
NA ÓPERA. As noites líricas já são tradicionais
na SBAV, sendo realizadas todos os anos. Nomes de destaque como Niza
de Castro Tank, Aparecida Xavier, Luís Oréfice, Aguinaldo
de Miranda Albert, entre outros, já marcaram sua presença
em outras récitas. Nessa última, entretanto, à
beleza das vozes somou-se a felicidade do tema, e o resultado foi um
estrondoso sucesso. A organização do evento ficou a cargo
de nosso confrade-tenor, Daniel Pinto, com assessoria da presidência.
Convidou-se dessa vez o renomado crítico de ópera Sérgio
Casoy, da Rádio Cultura, que elaborou o programa e garimpou as
árias em que o vinho fosse evocado, além de fazer a apresentação
de cada peça.
O recital teve início com uma romança de salão,
gênero de composição vocal adequado aos saraus elegantes,
de autoria do grande Giuseppe Verdi com versos de Andrea Maffei. Nessa
peça, “MESCETEMI IL VINO !” (Sirvam-me o vinho!)
(1845), exalta-se o vinho como o único dos prazeres verdadeiros
e fiéis da vida, pois os amores terminam e a amizade é
passageira. Cantaram as sopranos Isabel Batista e Vesna Bankovic, e
se saíram muito bem. Ao piano, como em todas as outras peças,
a experimentada professora Isabel Maresca.
Casoy nos conduz então dos aristocráticos salões
milaneses à ensolarada Nápoles, para ouvirmos una vera
canzonetta napoletana escrita em dialeto: GUAPPARIA (1914). Nos explica
também que o termo se refere aos Guappi, integrantes da malavita
napolitana, primos europeus do compadrito porteño e do malandro
carioca. Nosso guapo é o tenor Ludo Farago, que se lamenta da
falta de atenção de sua bem amada, a belíssima
Margherita, que não se comove nem mesmo com a serenata –
na qual não faltam guitarras e bandolins – com que é
brindada pelo desiludido apaixonado. Na canção pede que
a lua se vista de luto enquanto procura consolo num copo de vinho.
Já o trecho da ópera que se seguiu, LUCREZIA BORGIA (1833),
de Gaetano Donizetti, se passa na cidade de Ferrara, no século
XVI. Nela um grupo de jovens se diverte na festa da Princesa Negroni.
As atrações da noite são os vários tipos
de vinhos servidos: vinhos do Reno, de Chipre e da Madeira. Numa prova
de que o conceito de se deixar o melhor vinho para o final não
é recente, quando os camareiros trazem uma velha ânfora
de vinho de Siracusa (Sicília, portanto, e tido como o melhor
vinho), os convidados vibram, o jovem herói Maffio Orsini levanta
sua taça e canta o belo brindisi “IL SEGRETO PER ESSERE
FELICE” (O Segredo para ser feliz): levar a vida sem se preocupar
com o futuro, bebendo vinho com os amigos. Uma curiosidade: sendo o
personagem Maffio Orsini um adolescente, Donizetti atribuiu-lhe o registro
de mezzo-soprano, vai daí a aria ter sido interpretada por Clarice
Rodrigues.
A CAVALLERIA RUSTICANA (1890), de Pietro Mascagni, contém uma
das mais célebres árias de evocação ao vinho.
Trata-se de “VIVA IL VINO SPUMEGGIANTE!”, que o tenor Ludo
Farago interpretou. A ação se passa numa pequena aldeia
da Sicília, em pleno século XIX. Após a missa do
domingo de Páscoa, o jovem Turriddu convida a todos para um copo
de vinho na taverna de sua mãe, e canta a ária que faz
um elogio ao vinho. Casoy esclarece que o termo spumeggiante (vinho
muito jovem, rústico, artesanal, bebido diretamente dos barris),
acertadamente empregado pelo libretista, não deve ser confundido
com spumante.
O programa segue, e no próximo bloco tivemos duas adaptações
operísticas de peças de Shakespeare. HAMLET (1868) foi
retomado pelo francês Ambroise Thomas, e dele ouvimos a belíssima
“O VIN DISSIPE LA TRISTESSE” (que eu ainda não conhecia),
cantada pelo trágico herói durante a apresentação
teatral que engendra, para observar, de forma dissimulada, a reação
do tio usurpador, Cláudio. O título diz tudo, e mais uma
vez o vinho surge como o grande bálsamo do homem. O barítono
Alessandro Gismano interpretou brilhantemente a ária. Em MACBETH
(1847), Verdi aproveita a cena de banquete criada pelo bardo inglês,
na qual Lady Macbeth, já coroada rainha, recebe seus convidados
da nobreza da Escócia em seu castelo, e canta “SI COLMI
IL CALICE DI VINO ELETTO” (Encham-se as taças do vinho
escolhido). A soprano Vesna Bancovic emprestou sua voz à pérfida
Lady Macbeth.
Donizetti volta à cena e temos, afinal, aquela ópera em
que o vinho não é apenas evocado, mais do que isso, é
seu personagem principal. Afinal L’ELISIR D’AMORE (1832)
nada mais é do que vinho de Bordeaux contido em pequenas garrafinhas
e vendido pelo charlatão, Dr. Dulcamara, como se fora remédio.
Evidentemente trata-se de uma ópera bufa de primeiríssima
qualidade. O impagável Doutor, uma das mais notáveis figuras
cômicas da história da ópera, viaja pelas aldeias
italianas vendendo seu miraculoso remédio aos crédulos
camponeses como sendo uma panacéia capaz de curar todos os males:
epilepsia, asma, dor de dente, remoção de rugas, etc.
Sempre alcança enorme sucesso, pois o sabor do remédio
é excelente e provoca uma deliciosa sensação de
alívio em quem o toma. Certamente o negócio do Dr. Dulcamara
seria extremamente deficitário e inviável nos nossos dias,
tendo em vista os preços astronômicos que os vinhos de
Bordeaux alcançaram. Retomando o tema, eis o resumo da ópera:
o jovem camponês Nemorino está loucamente apaixonado por
Adina, que o ignora e pretende casar-se com o sargento Belcore. Desesperado,
Nemorino pede ao nosso curandeiro itinerante que lhe venda a poção
de amor que foi tomada pela rainha Isolda (conforme lera no romance
Tristão e Isolda). Dulcamara, sem pestanejar, vende-lhe a garrafa
de Bordeaux, dizendo ser a poção mágica do amor.
Dulcamara (o baixo Júlio Pavanelo) e Neporino (o tenor Daniel
Pinto) cantam então o divertidíssimo dueto “VOGLIO
DIRE LO STUPENDO ELISIR”. Na mesma ópera mais duas árias
báquicas, “Cantiamo, facciam brindisi” e “Per
me l’amore e il vino”, acontecem, mas não foram cantadas.
Neporino toma o vinho e se descontrai, torna-se mais alegre e chega
a ignorar a presença de Adina por pura distração.
A moça, diante da nova situação, passa a interessar-se
pelo camponês, e acabam se casando. A felicidade torna-se completa
quando morre um tio rico do noivo que lhe deixa toda a herança.
L’ELISIR D’AMORE talvez seja a metáfora mais justa
e perfeita que se tenha feito sobre a relação do vinho
com o homem. Nela o vinho é fonte de prazer, alegria e felicidade,
sendo encarado como um verdadeiro remédio espiritual capaz de
consolar o homem em meio às misérias do cotidiano.
Em seguida, um bloco dedicado aos vinhos fortificados. A primeira foi
a “SÉGUIDILLE” da ópera CARMEN (1875), de
Georges Bizet, que fala da Manzanilla, cantada pela mezzo-soprano Clarice
Rodrigues, o que fez com que os aficionados do charuto imaginassem que
também seria cantada a “HABANERA”. Não foi.
Seguiu-se a “CANZONE DELL’AVENTURIERE: VERSATE IL PORTO...”,
da ópera IL GUARANY (1870), do brasileiro Carlos Gomes, cantada
pelo barítono Alessandro Gismano. E a Czarda de Johan Strauss
“II KLANGE DER HEIMAT”, da ópera O MORCEGO (1874),
a cargo de Isabel Batista, que interpreta uma condessa húngara
(que na verdade é Rosalinda) num baile de máscaras, em
Viena, evocando sua terra natal ao olhar o brilho e o fogo aprisionados
num cálice de Tokay.
Talvez a mais famosa ária do repertório de tenor seja
“LA DONNA È MOBILE”, do RIGOLETTO (1851), de Giuseppe
Verdi. Nela, o libertino Duque de Mantova, disfarçado de capitão
de cavalaria, pede um copo de vinho ao taverneiro e canta essa canção
que fala da inconstância dos sentimentos femininos que vagam qual
piuma al vento. Cantou-a muito bem o tenor Farago.
Daniel Pinto volta e canta a canzonetta napoletana plena de sentimento
“O PAESE D’O SOLE”(1925), d’Annibale. Conta
a história de um cantor que, após tentar vencer no exterior,
volta à sua Nápoles natal. No jardim da casa materna,
frente ao mar, pede que refresquem o vinho pois deseja embriagar-se
de alegria. Como se vê, já naquele tempo se bebia o vinho
na temperatura correta...
Respondendo aos aplausos e aos pedidos de bis, o grupo todo, para encerrar
a noite com chave de ouro, cantou o brindisi da ópera LA TRAVIATA
(1853), de Verdi – (“Libiamo, libiamo, ne’lieti calici”).
Finda a cantoria, serviu-se uma bela pasta acompanhada de vinho tinto,
que ninguém é de ferro...
Publicado
na edição # 9, de junho de 2000, da revista VINHO MAGAZINE